Gregorio Duvivier

É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Gregorio Duvivier
Descrição de chapéu

Os escravos de Jó sabiam tudo: a gente precisa deixar o Zé Pereira ficar

Não importa quem tenha sido original, a entidade incorpora em qualquer pessoa que saia por aí batucando

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Escravos de Jó jogavam caxangá. A cena, por si só, já não faz sentido. Não há registros de que Jó tenha escravizado pessoas, tampouco que essas pessoas jogassem caxangá —jogo este do qual não há nenhum registro senão na cantiga "escravos de Jó".

Mas a parte mais intrigante vem a seguir: "deixa o Zé Pereira ficar". Onde estava o Zé Pereira até então na canção? Jó é um personagem bíblico. Onde é que tem Zé Pereira na Bíblia? E o mais importante: o que é que Zé Pereira aprontou pra que os escravos de Jó não quisessem deixá-lo ficar?

Ilustração que representa uma aglomeração de pessoas em fotos em tons de verde e vermelho e amarelo, em cujo centro se contra um boneco grande de cartola e com bigode
Publicada nesta terça-feira, 26 de abril de 2022 - Catarina Bessell

O leitor paulista talvez estranhe a menção a Zé Pereira, que não consta na versão bandeirante. Lamento informar: na batalha contra o Zé, o paulista está sozinho.

Grande parte do Brasil nem sabe que em São Paulo se canta: "Tira, põe, deeeixa ficar" alongando a primeira sílaba de "deixa" pra ocupar o lugar do verso omitido.

O corte faz algum sentido. Ao perceber que se tratava de um intruso na fazenda de Jó, o paulista, prático como sempre, cortou a menção anacrônica ao nosso Zé —assim como cortou o segundo beijinho no rosto, ao cumprimentar.

Lembrei do Zé Pereira nesse Carnaval de abril, em que tantas vezes se cantou: Viva o Zé Pereira, viva o Zé Pereira, viva o Zé Pereira, viva o Carnaval.

Lembrei que essa talvez tenha sido a nossa primeira marchinha, embora não seja nossa, e nem uma marchinha —mas a música-tema do musical "Les Pompiers de Nanterre", sucesso de 1869 no Rio de Janeiro.

Traduziram o refrão francês que falava de bombeiros fazendo exercício por "Viva o Zé Pereira, viva o Zé Pereira", e assim ela é cantada até hoje, louvando aquele que ninguém sabe quem foi.

Há quem defenda que o sapateiro português Zé Nogueira teria sido o Zé Pereira original. Cansado de batucar solas, Zé teria passado a batucar bumbos, levando o povo atrás, no primeiro cortejo carnavalesco.
Ninguém explica como é que Nogueira virou Pereira nem como é que o termo pegou tão rápido, inclusive em Portugal. Tudo indica que o Zé Nogueira foi só mais um Zé Pereira, como tantos antes e depois dele.
Não importa qual foi o primeiro Zé Pereira. Importa que nunca terá um último. A entidade incorpora em qualquer pessoa que saia por aí batucando em qualquer coisa.

O melhor do Brasil é o Zé Pereira. Quando se canta "viva o Zé Pereira", é pra dentro da gente —pra esse sapateiro interior que sobreviveu a dois anos de pandemia sem perder o gosto pelo batuque. Deixa o Zé Pereira ficar.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.