Enfim, abriram-se as grandes alamedas chilenas por onde passarão o homem e a mulher livres. Essa foi a previsão de Salvador Allende em seu último e corajoso discurso, antes de ter o Palácio de La Moneda bombardeado e ser morto pelas forças golpistas de Pinochet. Demorou 48 anos, mas as alamedas se abriram neste domingo.
A vitória de Gabriel Boric sobre José Antonio Kast representa uma espécie de segunda morte do pinochetismo, o mais cruel regime latino-americano. Foi a expectativa de presenciar esse acerto de contas histórico que me levou, com a delegação do PSOL, a Santiago para acompanhar as eleições.
O resultado tem dois significados diretos para a América Latina. Simboliza, primeiro, o refluxo da ofensiva direitista. No último período, a esquerda venceu na Bolívia, no Peru, em Honduras e, agora, no Chile. Já havia vencido antes no México e na Argentina. No Brasil, Bolsonaro está enfraquecido, e pesquisas indicam amplo favoritismo de Lula para 2022. Ao que parece, a onda de governos autoritários e antipopulares se desfaz antes do que muitos imaginavam.
E Boric venceu apesar de todo o jogo baixo da extrema direita. Tantas foram as fake news que ele teve que mostrar um exame toxicológico para comprovar que não usava drogas. No dia do pleito, empresas de ônibus reduziram a frota para dificultar a locomoção de eleitores, afetando mais a base de Boric. Ainda assim o comparecimento foi recorde, e a vitória foi por margem maior do que a esperada, 55% a 45%.
O segundo ponto que merece destaque é a chegada de nova geração de esquerda ao poder. Boric tem 35 anos. É produto das grandes mobilizações estudantis de 2011, que também formaram lideranças como Giorgio Jackson e Camila Valejos, com papel de destaque na coalizão vitoriosa e provavelmente no futuro governo. Foram ainda os jovens chilenos que protagonizaram as grandes mobilizações de 2019, sem as quais a vitória de Boric seria impensável.
Pude conversar com várias dessas lideranças e com o próprio Boric nesses dias em Santiago e é muito bom ver como não carregam velhos vícios políticos, têm abertura para novas pautas —com destaque para a ambiental e a feminista— e são capazes de uma comunicação mais direta com a juventude, sem chavões tradicionais.
Mas o governo de Boric terá grandes dificuldades, a começar pelo boicote anunciado de setores econômicos e por não ter maioria parlamentar. Além disso, a contraofensiva da direita se concentrará na Constituinte, formada como resposta à revolta popular. A próxima batalha será o plebiscito sobre as alterações constitucionais progressistas. E não será fácil. Na verdade, nunca foi. Mas os ventos que vem do Chile nos enchem de esperança. O próximo acerto de contas será no Brasil.
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