Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Juliette foi retratada como santa e heroína dos pobres em documentário simplista

Filme da Globoplay, assim como canção do EP da celebridade, traz narrativa desgastada sobre a desigualdade

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Quem assistiu à série "Você Nunca Esteve Sozinha", o documentário da Globoplay sobre a vencedora do "Big Brother Brasil" 2021 com quantidade recorde de votos, se espantou com a invenção de um mito a cada novo episódio.

Se nos últimos anos o declinante "BBB" dava sinais de esgotamento, essa edição não foi mais do mesmo. A repercussão do reality show que consagrou Juliette é mais ou menos equivalente à novela "Avenida Brasil", lá no distante 2012, que também não foi “apenas” mais uma novela.

Em "Você Nunca Esteve Sozinha", com longos e exagerados sete capítulos, as diretoras Patrícia Carvalho e Patricia Cupello construíram uma personagem bastante distante da que vimos no "BBB". Segundo seus olhares, Juliette é apenas vítima de conspirações internas e mentiras ao longo do programa e de desafios duros da vida.

O documentário transformou uma personagem paradoxal —pois é simpática e ególatra— em uma santa. Não há voz dissonante que não seja para ser transformada em escada para a biografia da agora milionária.

A série parece mais uma hagiografia, aquele tipo de escrita da Idade Média em que a Igreja contava a vida dos santos. Nada mais simplista. E havia riqueza a explorar —em parte, os brasileiros gostaram de Juliette, justamente, por ela ser mais ambígua do que uma heroína da “classe C” batalhadora.

Essa forma de contar as vidas dos ídolos populares teve como um marco a saga sobre Zezé Di Camargo e Luciano filmada por Breno Silveira no longa "Dois Filhos de Francisco", de 2005. O filme tem méritos que a série não tem, e nele foram inventados os parâmetros por meio dos quais a tão falada “classe C” contaria sua história.

Uma linha evolutiva de persistência e tenacidade, a força da família e a fé mágica num destino apoteótico são mobilizadas para narrar a história da dupla sertaneja, cujas vidas foram marcadas pela fome e a pobreza, passando pela morte do irmão e a certeza absolutista do pai de que seus filhos fariam sucesso.

Não era segredo que os sertanejos tinham origem humilde. A questão é que isso não era veiculado esteticamente nem por eles mesmos no início do sucesso nacional nos anos 1990. Foi em "Dois Filhos de Francisco" que as dificuldades puderam finalmente ser enfatizadas.

Vejamos. O especial de Leandro e Leonardo na TV Globo, com periodicidade mensal entre abril e dezembro de 1992, não fez referência consistente às origens da dupla em Goianápolis, em Goiás. Nesse mesmo ano, foi produzido um especial de Natal com a dupla.

De acordo com a modernidade desejada então pelos sertanejos dos anos 1990, esse episódio foi gravado no parque da Disney, no estado americano da Flórida, e mostrou a dupla à procura da namorada de Leandro, interpretada por Adriana Esteves. Outros vídeos da época mostravam ricos rodeios, relacionamentos amorosos em praias, mas quase nunca as origens agrárias pobres dos sertanejos.

O clipe de “Muda de Vida”, lançado por Zezé Di Camargo e Luciano em 1992, foi gravado no então recém‑inaugurado píer da praia da Barra da Tijuca, no Rio de Janeiro, em meio a biquínis, ondas e pranchas. O clipe de “Coração Está em Pedaços”, de 1992, foi filmado numa casa de praia, com a dupla bem vestida e a presença da musa Lisandra Souto. No clipe de “Eu Só Penso em Você”, de 1993, Zezé e Luciano cantam com o astro country Willie Nelson nos arredores de Nashville, nos Estados Unidos, em várias locações nevadas. E Nova York no auge do inverno foi o cenário de “Melhor que Antes”, clipe de 1993.

Mesmo quando o interior rural brasileiro aparece, como no clipe de “É o Amor”, de 1991, ou ainda em “Página Virada”, de 1989, e “Ela Não Vai Mais Voltar”, de 1994 —essas duas últimas gravadas por Chitãozinho e Xororó—, as referências são sempre fazendas ricas, aviões, caminhões, cavalos de raça e moda country. Nunca estava em jogo a pobreza, marca da desigualdade do Brasil rural.

"Dois Filhos de Francisco" inventou ainda uma forma de tratar da ascensão de largos setores da sociedade durante o lulismo. Aliás, não custa lembrar que o próprio ex-presidente Lula também enfatizava essa retórica, que está presente em seu filme hagiográfico, "Lula, O Filho do Brasil", de 2009, de Fábio Barreto. A vida dos “batalhadores brasileiros” até virou, nesse mesmo período, conceito sociológico e título de livro de Jessé Souza.

Essa retórica é reprisada no documentário sobre Juliette, sem a mesma eficácia. O motivo é reiterado na canção “Bença”, do recém-lançado EP da cantora. É um formato banalizado. A série soa, diante de tudo o que vimos desde 2005, ainda mais corroída. Há outras formas de se narrar vidas, e nossos roteiristas poderiam se aprofundar em outros formatos. Afinal, o sucesso de Zezé se deve a bem mais do que as moedas do pai.

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