Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Música sertaneja foi desprezada por São Paulo que queria ser Nova York

Preconceito das classes médias letradas da capital fazia sobrar escárnio, deboche e ironia aos artistas do gênero

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Semana passada, comecei a escrever sobre música sertaneja aqui na Folha. Foi um convite do Vinicius Mota, secretário de Redação deste jornal. Ao que me consta, é a primeira coluna de opinião sobre a música sertaneja em cem anos de Folha de S.Paulo.

É espantoso que tenha demorado tanto. Mas é compreensível. A Folha foi criada em 1921 com o intuito de representar setores progressistas urbanos da então pujante capital paulista. Nasceu como projeto de se opor a outros jornais que representavam as elites rurais, conservadoras e tradicionais.

Chitãozinho e Xororó em show - Divulgação

Um dos símbolos da Folha nas décadas de 1920, 1930 e 1940 foi o personagem Juca Pato, do cartunista Belmonte. Apesar do nome, que remete a Jeca Tatu, famoso personagem de Monteiro Lobato, Juca Pato nada deve ao imaginário interiorano. Concebido careca, "de tanto levar na cabeça", sempre usava o lema "podia ser pior".

Ele encarregava-se, assim, de traduzir as críticas e aspirações da classe média paulistana no jornal. Centrava seus ataques na corrupção e na arrogância dos ricos, apresentando-se como defensor dos fracos. Juca Pato era um personagem urbano, na aparência e no pensamento. Vestia terno. Usava sapatos e óculos. Representava as classes médias indignadas com um Brasil que ainda se mostrava preso ao seu passado tradicionalista, escravagista, patrimonial.

Mesmo depois da morte de Belmonte, em 1947, Juca Pato continuou no imaginário da Redação e na postura de seus editores. A Folha continuou sendo porta-voz das classes médias da capital e, com a expansão editorial, foi se tornando porta-voz de segmentos progressistas letrados do país.

A capital paulista vive um dilema, já descrito por jornalistas que trabalharam aqui. O crítico musical Pedro Alexandre Sanches escreveu que São Paulo gostaria de ser Nova York, Londres ou Berlim. Grande parte de seus leitores, adeptos ao liberalismo nos costumes, sintonizam-se às modas dessas metrópoles.

Seus produtores sintonizam-se na defesa de uma modernidade citadina e dinâmica. No entanto, São Paulo está no meio do Brasil, e mais do que isso, no meio do estado de São Paulo. Fato óbvio, mas que culturalmente buscou-se ignorar, quando não simplesmente fazer calar.

A música sertaneja foi, nesses cem anos, largamente ignorada pela Folha. De matriz paulista, a música sertaneja surgiu nas gravadoras na mesma década de fundação do jornal. A primeira gravação foi em 1929, “Jorginho do Sertão”, cantada por Mariano e Caçula, em disco produzido pelo tieteense Cornélio Pires.

Como projeto paralelo, mas dissonante, a música rural mostrava a São Paulo que suas origens não eram nada urbanas ou modernas. Há uma São Paulo que não se parece em nada com Nova York, Londres ou Berlim. Há o interior e a música sertaneja. Muito perto. Perto demais. É como se, nos Estados Unidos, Nova York estivesse no meio do Texas. E por isso um certo nojo da música sertaneja marcou as páginas da Folha.

Vamos aos exemplos. Em 1991, Chitãozinho e Xororó tocaram pela primeira vez no Canecão, famosa casa de shows do Rio de Janeiro, depois de 21 anos de carreira. A manchete da Folha fez coro aos jornais cariocas e lamentou a invasão de um dos templos da MPB: “O caipirismo ‘contamina’ também o Rio”.

Nesse mesmo ano, um crítico cultural escreveu: “Onda neojeca expõe face retrógrada do país”. Quando se deparava com a música rural, o máximo que a Folha conseguia aceitar eram os caipiras, aqueles que emulavam a tradição e a ideia de autenticidade. Curiosamente, como vimos, a Folha teve pouco apreço pelos jecas-tatus nas suas primeiras décadas de vida. Para os sertanejos, modernizadores do gênero e populares, sobrava escárnio, deboche e ironia. Ou, mais comumente, o silêncio.

Quando não dava para evitar, o jeito era avacalhar. Em julho de 1992, houve um show aberto no parque Ibirapuera. Quase 30 mil pessoas assistiram ao trio de duplas Zezé Di Camargo & Luciano, Leandro & Leonardo e Chitãozinho & Xororó até uma hora da madrugada.

O jornal percebeu que o público das duplas não era apenas de interioranos e pobres da capital. Era a época da nacionalização da música sertaneja —o gênero ultrapassava barreiras de classe e rompia as fronteiras entre cidade e campo. O jornal, então, noticiou, não sem ironia: “Classe média solta o Jeca em noite sertaneja”.

Conto essas passagens porque é importante refletirmos sobre os lugares construídos pela opinião pública. Até para que, conscientes de tais posições, seja possível criar novos caminhos no contato com a cultura massiva popular brasileira. Essa será a proposta desta coluna. Quem sabe agora, com a modernidade digital e os ouvidos abertos, nós venhamos a dialogar com o ponto de vista de Ituverava. Ou Botucatu. Barretos, quem sabe? E até Ourinhos.

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