Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu LGBTQIA+

Gabeu, ídolo do queernejo, transforma música de Raul Seixas em hino dos gays

Nova versão de 'Cowboy Fora da Lei' subverte e potencializa a canção, que passa a denunciar preconceito contra LGBTQs

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Caro leitor, permita-me uma sugestão: abra o YouTube e assista ao clipe de “Cowboy Fora da Lei”, de Gabeu. Você assistirá à ressignificação de uma canção. São poucas as regravações que conseguem tal feito: mudar a forma como escutamos uma música. A versão de Gabeu para o clássico de Raul Seixas, originalmente lançado em 1987, consegue tal proeza.

Embora já fosse cantada em shows e lives, a versão sertaneja de “Cowboy Fora da Lei” só teve seu clipe lançado em 13 de maio deste ano. Nesse vídeo fica claro o intuito subversivo de Gabeu, mais do que em outras exibições.

Filmado numa locação ao ar livre, vestido com uma roupa de vaqueiro estilizada (a estampa é de vaca malhada), batom, sombra e luvas cor-de-rosa, brincos, chicote e botas de salto alto, Gabeu não deixa dúvida: quer transformar o último grande sucesso de Raul Seixas em hino da condição gay no mundo sertanejo.

É impossível ouvir a versão sem pensar que os versos de Raul parecem ter sido feitos especialmente para Gabeu e o mundo do sertão. No Brasil atual, no qual a vereadora homossexual Marielle Franco foi morta brutalmente, Gabeu cantou: “Mamãe, não quero ser prefeito/ Pode ser que eu seja eleito/ E alguém pode querer me assassinar”. E como não ouvir uma resposta inteligente e irônica aos dias atuais militarizados em: “Papai, não quero provar nada/ Eu já servi à pátria amada/ E todo mundo cobra a minha luz/ Oh coitado, foi tão cedo/ Deus me livre eu tenho medo/ Morrer dependurado numa cruz”.

A performance do cantor subverte o sentido original da canção. Gabeu é o principal expoente do movimento que, desde 2019, vem sendo chamado de queernejo. Trata-se de um conjunto de artistas LGBTQIA+ que se apropria das tradições sertanejas e as funde com o discurso identitário contrário à heteronormatividade. Gabeu não está sozinho. Nomes como Alice Marcone, Gali Galó, Reddy Allor, Benti, Mel & Kaleb, Sabrina Angel aparecem, ainda que para um público bastante diminuto, como expoentes desse subgênero da música sertaneja.

Gabeu é filho do sertanejo Solimões, que desde a década de 1980 se apresenta ao lado do parceiro na conhecida dupla Rio Negro & Solimões. Caso excepcional num meio machista como a música sertaneja, o pai demonstra não apenas aceitar, mas louvar a carreira artística do filho. O próprio Solimões já foi vítima de preconceito, sofrendo constantes piadas maldosas devido à sua baixa estatura. Gabeu encontrou algo sui generis na tradicional família brasileira: o acolhimento diante da sua orientação sexual.

Em outros gêneros musicais, como a MPB, a incorporação da temática queer já faz bodas de ouro. Basta lembrar carreiras como as de Caetano Veloso, Maria Bethânia, Ney Matogrosso, Simone, Angela Ro Ro, Adriana Calcanhotto, Zélia Duncan, entre outrxs: cada um à sua maneira e em diferentes graus, todos tiveram de lidar com a questão da diversidade sexual ao longo da carreira. No entanto, na música sertaneja, isso nunca foi comum. Caso raro foi o da dupla Rosa & Rosinha, que nos anos 1990 ficava entre a afirmação e o deboche da homossexualidade.

Não se trata de uma especificidade da música sertaneja, mas de grande parte dos gêneros de matriz rural, em que o machismo impera. Também Luiz Gonzaga, o pai do sertão musical nordestino, não lidava muito bem com a temática homossexual nas searas do forró, a ponto de cantar que “no Ceará não tem disso não”, nome de uma famosa canção sua.

Na música sertaneja, dos anos 1920 até hoje, praticamente nada foi explorado na temática queer. Mais recentemente, o protagonismo das mulheres num movimento chamado de “feminejo” vem afrouxando um pouco as amarras mais machistas, introduzindo outras temáticas não tão comuns a esse gênero. Algumas com mais eficácia que outras, fazem parte dessa geração Simone & Simaria, Maiara & Maraísa, Naiara Azevedo, Yasmin Santos, Paula Mattos e a mais conhecida delas, Marília Mendonça.

Gabeu deu um passo além. Talvez sem a justa repercussão, sua versão de “Cowboy Fora da Lei” desconstrói a música de Raul, acrescentando à canção um significado óbvio, o do caubói gay, mas que ninguém tinha visto.

Há outros casos na história da música brasileira em que novas versões de músicas já consagradas transformam seu sentido original. Em 1971, Caetano Veloso regravou em Londres o clássico “Asa Branca”, de 1947, de Luiz Gonzaga. Numa versão chorosa e terna, Caetano transformou a principal canção sobre êxodo rural brasileiro numa canção do exílio. Em sua gravação, o baiano cantava a possibilidade de um dia voltar: “Quando o verde dos teus olhos/ Se espalhar na plantação/ Eu te asseguro, não chore, não, viu/ Que eu voltarei, viu, meu coração”.

Outro exemplo de subversão musical aconteceu com Ney Matogrosso. Ele regravou o xote “Homem com H”, música originalmente gravada pelo grupo Os Três do Nordeste em 1974. A versão de Ney, gravada no disco de 1981, subverteu a letra machista: “Nunca vi rastro de cobra/ Nem couro de lobisomem/ Se correr o bicho pega/ Se ficar o bicho come/ Porque eu sou é homem”. Na sua gravação, Ney picota o refrão e canta: “cobra/ homem/ pega/ come”. Mais adiante, seguindo a letra original, ironiza: “Eu sou homem com H/ E com H sou muito homem/ Se você quer duvidar/ Olhe bem para o meu nome”.

Musicalmente a versão de Gabeu não inova muito da versão original, é verdade. Os arranjos e instrumentação não variam quase nada. A voz de Gabeu, que vem cantando cada vez melhor, também não muda muito a versão de Raulzito. Ao contrário de ser um demérito, essa postura estética atua em sentido paradoxalmente inovador. Assim, a subversão se concentra na performance. Manter a versão sonoramente muito perto da original ajuda descortinar o ponto estético de Gabeu: mostrar os sentidos velados da letra que até então ninguém tinha enxergado. Talvez nem o próprio Raul. Em vez de lacrar, gíria banal comum nos dias de hoje, Gabeu livrou a canção. Livrou-a do seu sentido original, potencializando-a.

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