Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu machismo

Chico Buarque se rendeu à autocensura no caso de 'Com Açúcar, com Afeto'

Músico já foi mais enfático na defesa de sua obra, mas parece enfraquecido diante de críticas feministas atuais

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Há algumas semanas uma fala de Chico Buarque no documentário "O Canto Livre de Nara Leão", de Renato Terra, vem provocando repercussão.

Chico disse que se sente incomodado com a canção "Com Açúcar, com Afeto", composta a pedido de Nara, e que há algum tempo vem sendo arrolada entre as suas canções que seriam machistas. Disse Chico: "Ela [Nara] me encomendou uma música de mulher sofredora e me deu exemplos de sambas, de Ary Barroso, de Assis Valente, aqueles sambas da antiga que os homens saiam para a gandaia e as mulheres ficavam em casa sofrendo, tipo Amélia!".

"Ela encomendou e eu fiz. Eu gostei de fazer. A gente não tinha esse problema. É justo que haja. As feministas têm razão. Eu vou sempre dar razão às feministas, mas elas precisam compreender que naquela época não passava pela cabeça da gente que isso era uma opressão. Que a mulher não precisa ser tratada assim… Elas têm razão. Eu não vou cantar 'Com Açúcar, com Afeto' mais. E se a Nara estivesse aqui ela não cantaria mais certamente."

Retrato de Chico Buarque no livro 'Revela-te, Chico - Uma Fotobiografia', organizado por Augusto Lins Soares - Reprodução

A polêmica tomou conta da internet.

Juca Kfouri argumentou que "ninguém tem o direito de censurar ‘Com Açúcar, com Afeto’, nem mesmo seu autor". Para Juca, Nara teria um veredicto diferente do proferido por Chico: "Corajosa como era, Nara provavelmente enfrentaria o anacronismo e cantaria a linda composição com o vigor que cantava 'Carcará' ou 'Opinião'".

O minúsculo Partido da Causa Operária (PCO) afirmou em nota que "o identitarismo fez com Chico Buarque, um dos maiores compositores da música popular brasileira, o que a ditadura militar teve dificuldade de fazer".

A cantora Fernanda Takai, que há alguns anos se destaca regravando canções do repertório de Nara, disse, se referindo à música: "Ela vai continuar [no repertório do show]. Adoro a canção, a história sobre como surgiu, muito bem escrita".

O crítico Rodrigo Faour, autor de vários livros de música brasileira, também se posicionou: "O fato de você cantar um personagem que vive daquele jeito não quer dizer que você apoie aquilo".

O jornalista Mauro Ferreira foi na mesma linha: "Parece que falta lucidez quando discussões surgidas nas redes sociais apontam para a dificuldade de entendimento de que, numa canção, a interpretação da realidade não significa necessariamente que o autor legitime essa realidade. Sem esse entendimento do espaço e da função do eu lírico na arte, a sociedade empobrece intelectualmente e se torna refém do algoritmo".

Em resposta às críticas, Chico disse, em entrevista a Regina Zappa: "Criaram essa celeuma de que estou cancelando, me autocensurando, vetando. Tenha paciência. Não tenho nada a ver com isso. Deixar de cantar não é proibir, nem cancelar".

De fato, não era novidade a ausência da canção no repertório do compositor, como lembrou o pesquisador Luiz Antonio Simas: "Eu devo ter ido a todos os shows do Chico Buarque desde que me conheço por gente e ele nunca cantou ‘Com Açúcar, com Afeto’. Ele declarou que não vai mais cantar uma música que já não canta".

Chico não canta há algum tempo a canção, mas ela continuou sendo muito gravada. Desde que foi composta, "Com Açúcar, com Afeto" foi interpretada por diversas cantoras, entre elas Maria Bethânia, Zizi Possi, Fafá de Belém, Maria Creuza, Isaurinha Garcia e a já mencionada Fernanda Takai, dentre várias outras menos famosas.

Chico terminou sua réplica dizendo que a música é datada, por isso não a canta mais. E deu como exemplo o fato de também não mais cantar "Pelas Tabelas", sua composição que embalou as esquerdas na redemocratização, mas que nos dias atuais poderia ser confundida com uma manifestação bolsonarista: "Tem um samba que gosto muito e é uma pena não poder cantar que é o ‘Pelas Tabelas’. Não canto mais porque fala ‘Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela/ Eu achei que era ela puxando o cordão’ ou ‘Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas/ Eu pensei que era ela voltando’. Não dá mais. Era situada na época das Diretas Já. Ou seja, todo mundo batendo panela de camisa amarela, se eu cantar hoje... [risos]. Ficou datada, não é? Não quer dizer que eu renegue a música. Só não canto mais".

bebê, mulher e menina em foto preto e branca
Nara Leão canta 'A Banda' com Chico Buarque em fotografia de 1967 reproduzida na biografia 'Ninguém Pode com Nara Leão', de Tom Cardoso - Reprodução

Em breve, periga toda a produção de Chico ficar "datada", diante de tantas mudanças que o Brasil vem vivendo nas últimas décadas. A MPB, que já foi o centro legitimador da cultura musical brasileira, não ocupa mais esse espaço. Chico, que já foi chamado de "unanimidade", hoje é patrulhado de forma simplória. E, a depender dele mesmo, parece justificável seu gradual apagamento, se não por autocensura, ao menos por silenciamento paulatino.

Quando gravou "Com Açúcar, com Afeto", em 1967, Chico ainda não era visto como o compositor que "dava voz" às mulheres, como passou a ser reconhecido a partir da década seguinte devido às diversas canções de eu lírico feminino. Até bem pouco tempo atrás, havia unanimidade nesse quesito. A ponto de, em 2014, a revista Claudia fazer uma lista de cinco canções que, segundo a revista, "provam que ele entende a alma feminina": "Ana de Amsterdã", "Terezinha", "A História de Lily Braun", "Joana Francesa" e "Bárbara". A matéria foi assinada por Redação M de Mulher.

Mas em 1967 era estranho um homem cantar no eu lírico feminino. Na contracapa do disco, Chico sentiu-se obrigado a justificar-se: "Insisti ainda em colocar no disco o ‘Com Açúcar, com Afeto’, que eu não poderia cantar por motivos óbvios. O problema foi solucionado com rara felicidade pela voz tristonha e afinadíssima de Jane". Na década seguinte, Jane se tornaria famosa na dupla Jane & Herondy, cujo principal sucesso foi a melodramática "Não se Vá".

Nem sempre a reação de Chico às críticas foi o silenciamento. Houve momentos em que ele se sentiu intimado a defender sua criação de forma mais enfática. Até porque "Com Açúcar, com Afeto" foi patrulhada pelo público no passado também.

Naquele momento, o grande dilema era a questão comercial da arte. Até que ponto um artista das rádios, das gravadoras e da TV poderia se misturar com o mercado? Até que ponto o artista não estaria se vendendo à indústria cultural, termo tão em voga na época, e hoje praticamente extinto das disputas identitárias?

Em 1972, Chico autorizou que sua "Com Açúcar, com Afeto" fosse usada numa propaganda. Toda vez que um artista da MPB ousava dar um passo além no comercialismo, as esquerdas pegavam no pé. E Chico na época se justificou com mais coragem do que faz hoje, sem tentar se silenciar sobre sua própria produção, como explicou à revista Realidade em dezembro de 1972: "A música popular tem uma vida curta. Não posso impedir (e parece que os do direito autoral também não) que uma canção minha seja utilizada, de velha, como mero veículo publicitário. ‘Com Açúcar, com Afeto’, por exemplo, virou anúncio de bombom, açúcar e afeto. O que importa é o momento de criação. Componho aquilo que quero. Depois a canção será consumida ou não, mas não como simples objeto e, de preferência, jamais como mero adorno".

Nos dias de hoje, a recepção parece estar ganhando do momento da criação. E Chico está se apagando paulatinamente, com sua própria conivência. Com tais decisões, perde o Brasil.

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