Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Cornélio Pires não é herdeiro da Semana de 22 por ser modernista caipira

Escritor foi o responsável pela entrada da música rural na indústria fonográfica e dialogou com inovações do modernismo

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Cornélio Pires nasceu em Tietê, município do interior de São Paulo, em 1884. Para os amantes da música caipira, é o principal nome do gênero na primeira metade do século.

Jornalista apegado aos valores do interior, viveu também na capital do estado, para onde se mudou aos 17 anos de idade, em 1901; mesma capital em que viviam Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral e outros protagonistas de 1922. Embora fosse reconhecido investigador do folclore popular de São Paulo, como Mário de Andrade, Cornélio não foi convidado para o Theatro Municipal quando da Semana de Arte Moderna.

Modernistas
Fotografia com alguns dos integrantes do grupo dos modernistas, entre os quais Mário de Andrade, Rubens Borba de Moraes e Guilherme de Almeida - Domínio Público

Desde a década de 1910, Cornélio Pires publicava livros de contos e causos, nos quais retratava a pureza do caipira e a ironia interiorana. O primeiro foi "Musa Caipira". Até 1929 seriam 14 livros, dentre eles "Tragédia Cabocla", de 1914, "Quem Conta um Conto…", de 1916, "Cenas e Paisagens da Minha Terra" e "Conversas ao Pé do Fogo" —ambos de 1921— e "Seleta Caipira", de 1926.

Enquanto a Semana de 22 e seus integrantes se preocupavam com a antropofagia e os caminhos estéticos para tirar o Brasil da gaveta, como diria anos mais tarde Rolando Boldrin, Cornélio Pires fazia tudo isso na prática.

Em 1929 Cornélio entraria para a história da música caipira: ele foi o pioneiro em gravar discos do gênero. Como nenhuma gravadora quis bancar a produção, que não era vista como rentável na época, ele bancou 30 mil discos do próprio bolso. Entre causos e contos, havia também a primeira canção caipira lançada em disco, "Jorginho do Sertão", gravada pela dupla Mariano e Caçula, integrantes da Turma Caipira Cornélio Pires. Até o fim da vida, em 1958, Cornélio escreveu um total de 23 livros e produziu 104 músicas em 52 discos de 78 rotações.

Cornélio viajava em dois carros pelos interiores, anunciando lançamentos e apresentações sobre a cultura caipira. Um dos carros ia repleto de discos e livros. Viajava com as duplas e se apresentava em circos e praças públicas, contando causos, descobrindo talentos e dirigindo apresentações.

Cornélio Pires nunca conseguiu o passaporte de moderno, mesmo que o regionalismo costume ser reconhecido como um dos braços estéticos da Semana de 22. Com tantos sendo aceitos como "herdeiros de 22", é curioso que justamente Cornélio ainda seja barrado no baile.

Retrato do escritor e jornalista Cornélio Pires - Folhapress

A Semana de 22 vem sendo alvo de intensos debates nas páginas desta Folha. Especialmente desde a publicação dos artigos de Luís Augusto Fischer e de Ruy Castro, houve uma série de colunas, artigos, reportagens e debates que movimentaram suas páginas de forma instigante.

Fischer e Castro denunciaram, cada um a seu modo, o caráter "elitista" e "paulistocêntrico" não apenas da Semana, mas sobretudo da forma pela qual nos lembramos dela.

No calor dos debates, os integrantes da Semana também foram acusados de "esconder negros e índios", como escreveu a jornalista Carolina Moraes. Mas houve aqueles que se posicionaram positivamente em relação ao legado cultural da Semana.

No mais eloquente dos artigos em defesa do legado de 1922, José Miguel Wisnik apontou as diversas permanências da Semana de 22 no cenário cultural brasileiro, enfatizando que ela não se extinguiu na sua curta duração no Theatro Municipal. O movimento cultural dali surgido, para Wisnik, "consiste na aliança entre o erudito e o popular com base na mediação da classe média. Esse arco poderoso incluiu a literatura, as artes visuais, a música de concerto e chegou à MPB e ao cinema novo".

Para Wisnik, essa força cultural permanece no tempo, e até músicos mais recentes do rap seriam representantes daquela histórica semana: "Acontecimento decisivo no campo cultural mais recente é a emergência de um sujeito periférico que se encarrega das próprias mediações, a começar por ‘Sobrevivendo no Inferno’, dos Racionais MC’s, [disco de] 1997. Emicida leva adiante essa chama. Sabe das diferenças com os modernistas, mas não abre mão da grandeza inspiradora de quem acrescenta mundos ao mundo". Emicida e Racionais ganham assim o passaporte legitimador de "herdeiros de 22".

Se houve quem denunciasse o racismo dos integrantes da Semana, também houve quem visse negros onde até então quase ninguém tinha visto. Tom Farias argumentou em sua coluna que tanto Di Cavalcanti quanto Mário de Andrade eram de origem negra, algo que vem sendo silenciado pelos movimentos negros em geral.

Já o artigo de Laís Modelli realçou o papel das mulheres durante a Semana, reforçando as participações de Anita Malfatti, Zina Aita, Regina Gomide Graz e Guiomar Novaes no movimento modernista.

Por sua vez, até o futebol ganhou bênçãos modernistas, ao ser analisado pelo historiador Luiz Antonio Simas como o verdadeiro ápice das questões levantadas por aqueles artistas: "O processo de popularização do futebol tem que ser inserido dentro da ideia do modernismo, sim, porque nós jogamos o futebol canibalizando o jogo inglês. O exemplo mais contundente de antropofagia do Brasil não está nas letras, nas músicas, nem no pensamento social. Está no futebol", acrescentou Simas.

Para os defensores da Semana de 22 e seu legado, muita coisa da cultura nacional cabe no seu espectro. Mas a música caipira, jamais. Mas, afinal, o que esse gênero musical teria a ver com a Semana de 22?

Se tomarmos como definição de modernismo a versão de Eduardo Jardim, um dos principais teóricos da Semana de 22, a obra de Cornélio Pires deveria ser mais bem analisada por nossos intelectuais. Segundo Jardim, autor do clássico "A Brasilidade Modernista: Sua Dimensão Filosófica", de 1978, não havia unanimidade, do ponto de vista estético, entre os integrantes da Semana, mas havia a preocupação com a atualização da produção artística e a intenção de romper com toda forma de academicismo. Havia ainda a ideia de se construir uma identidade nacional no sentido amplo, incorporando elementos populares de nossa cultura. Segundo Jardim, a semana também não deve ser vista como restrita àquela data, mas há de se ver suas consequências na cultura brasileira desde então.

Pois Cornélio realizou tudo isso na prática. A indústria fonográfica caipira por ele criada é forte até hoje. Longe de renegar o elemento popular, Cornélio resgata-o. Como todos da Semana de 22, Cornélio não estava preocupado com as questões identitárias de hoje, nas quais o essencialismo busca pureza de raças.

Não, Cornélio queria a mistura, daí a apologia do caipira caboclo, mistura de raças hegemônica nos interiores que visitava. Cornélio não foi academicista; pelo contrário, saiu em direção ao Brasil real misturando-se com o público que buscava representar. Buscava a conexão com o popular, trazendo seus causos, contos e canções para o mundo da literatura e do disco. Cornélio modernizava a tradição oral, tornando-se mediador das culturas interioranas e da cidade moderna e cosmopolita.

O público de Cornélio não era o das elites letradas, que fundaria a USP na década seguinte, que fomentaria o público principal dos modernistas ao longo de décadas. Cornélio nunca foi aceito ali, como tampouco a música caipira e sua herdeira, a música sertaneja. Mas, assim como o futebol, Cornélio forjou de forma mais eficaz a modernidade brasileira para as massas nacionais do que muito texto refinado.

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