Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Depressão entre sertanejos ainda é tratada como sofrência em suas músicas

Vida de shows, amores, balada e curtição não permite aos artistas extravasar tal sentimento de crise psicológica

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Há um fenômeno entre os sertanejos "universitários", ou seja, a geração de 2005 para cá, que não encontra precedentes em gerações anteriores: a frequência cada vez maior de artistas com depressão, síndrome do pânico ou algum tipo de transtorno emocional, muitas vezes em função das pressões da carreira.

De fato não é uma especificidade da música sertaneja. Cada vez mais as sociedades ocidentais vêm se mostrando compreensivas com os problemas psicológicos. E as redes sociais são cada vez mais o espaço usado para abordar esse delicado tema.

Um dos primeiros artistas a abrir o jogo sobre essa condição foi Paula Fernandes. Desde que surgiu para o grande público, por volta de 2010, a cantora conta que conviveu com a depressão entre a adolescência e a vida adulta. Paula chegou a desistir da carreira e só a retomou em função do carinho familiar e das consultas com psicólogos e psiquiatras.

Cantora Paula Fernandes em entrevista ao programa 'The Noite', de Danilo Gentili, no SBT - Gabriel Cardoso/SBT

Por volta da mesma época, veio à tona o caso de Renner, da dupla com Rick. Após se separarem, em 2010, Renner sofreu uma crise depressiva. Na época, sua assessoria explicou que o cantor sofria de síndrome do pânico desde um acidente, em 2001, e o uso contínuo de remédios causou dependência. Apesar de sofrer então há quase dez anos, foi só na segunda década do século que a situação de Renner pôde ser tematizada. A dupla retomaria a carreira em 2012, mas romperia novamente em 2015, sempre devido a acontecimentos tumultuosos da vida de Renner. Em 2018, retomaram mais uma vez.

Outro cantor que tem depressão é Cesar Menotti, da dupla com Fabiano. Tendo recebido o diagnóstico em 2008, Menotti faz tratamento desde então e fala com frequência sobre o assunto. "O principal sintoma da minha depressão não era minha tristeza, era a falta de motivação. Eu ia para o hotel, não saía para nada. Na hora do show eu saía. Quando eu subia a escada do palco eu vestia um personagem. Mas não era para enganar ninguém. Eu pensava que as pessoas não tinham que compartilhar aquele meu problema", disse em entrevista ao podcast Flow recentemente.

Em novembro de 2013 foi a vez de Gusttavo Lima comentar publicamente: "Tenho síndrome do pânico. Quando tenho que ir em um local público sozinho, fico louco". O cantor associou a síndrome à fama: "Acho que a gente vem vivendo isso [a fama] há um bom tempo. Em todo tempo você está acompanhado de várias pessoas, de assessor, segurança. A pessoa está com você por 24 horas. Esses dias saí de casa às 4h da manhã para comprar um negócio numa conveniência e eu não tive coragem de descer porque estava sozinho; sabe aquela insegurança de andar sozinho? Então, tenho isso".

Em 2015, depois do cancelamento de um show importante, Lucas Lucco afirmou em sua conta do Instagram que estava com problemas de saúde e que tomava remédios para conseguir voar de avião, para dormir, para acordar, para se manter calmo e conseguir ficar em hotel.

"Desenvolvi síndromes, saudades acumuladas, medo e trabalho acumulados. Estou lutando para reverter esse quadro o mais rápido possível", escreveu o cantor.

Luciano, irmão de Zezé Di Camargo, também enfrentou problemas psicológicos. Ele já sofreu crises que fizeram com que Zezé se apresentasse sozinho em algumas ocasiões. Nas fases em que ganhou peso, ele revelou que comia em excesso por causa da depressão.

Victor Chaves, irmão na dupla com Leo, também sofreu maus bocados quando percebeu que a estafa física se juntou à crise pessoal por causa da separação da mulher. Ele contou à repórter da Folha Eliane Trindade em junho de 2020: "Fui para Uberlândia para decidir se ia parar a turnê da dupla. Lá, me deparei com um caos psicológico e emocional. Tombei. Seis dias depois do episódio, quase tirei minha própria vida. Prefiro não entrar em detalhes. Fiquei sem chão. Na mídia, antes me retratavam como um ser perfeito, o que nunca fui. Depois, você vira um monstro, o que também não é".

Além de Victor Chaves, Hudson —da dupla com Edson—, João Carreiro —com Capataz— e até Marrone —parceiro de Bruno— já declararam terem convivido com problemas psicológicos durante algum período da carreira.

Antes da geração dos anos 2000, o tema era tabu e jamais mencionado em público. É bem provável que em outras épocas dificuldades semelhantes tenham causado tragédia na vida de vários artistas. Mas não se usava a palavra depressão, síndrome do pânico, ou qualquer termo semelhante para descrever tais momentos críticos.

Um caso exemplar é a tragédia que ocorreu em 1982 com Barrerito, um dos integrantes do Trio Parada Dura. Depois de sobreviver a uma queda de avião, o compositor ficou paraplégico. Barrerito acabou sendo substituído do Trio Parada Dura porque, segundo contou em entrevistas posteriores, não era mais aceito entre seus pares.

Em carreira solo, cantou sobre sua condição sempre de forma sofrida, como em "Morto por Dentro": "Morto por dentro, vivo por fora/ Uma fumaça que eu sou agora/ Pois quem me vê hoje ignora/ O homem forte que eu fui outrora". Em "Onde Estão os Meus Passos", que deu título a seu disco de 1987, Barrerito sofreu em público: "Meus passos se afastaram de mim/ Mas eu posso ouvir e sentir os meus passos/ Com eles foram minhas vontades/ Minha paz de verdade, eu fiquei aqui".

Hoje em dia não seria difícil constatar algum nível de depressão na condição de Barrerito. Apesar do óbvio sofrimento das letras, sua condição era compreendida como "tristeza", "banzo", ou variantes do tipo. Antes dos anos 2000 nem sequer havia vocabulário socialmente disseminado para descrever crises psicológicas de forma mais sutil. E, quando havia, existia também o tabu.

Quando os sertanejos abordavam tais temas, era quase sempre através da conotação amorosa, sem a especificidade da doença. Em "Morto por Dentro", Barrerito mistura o que sente pelo acidente com a solidão causada por uma relação em que foi traído. Confunde-se o estado depressivo com aquele estado da pessoa que sofre por amor. Numa canção recente de Marília Mendonça chamada "Deprê", de 2021, esse tom permanece: "Deprê/ Luto absoluto, sem beber, sem comer/ Minha doença é grave, eu sinto falta de você/ É um sofrimento raro, preciso de atestado/ Solidão pós-término traumático".

Na última década tornou-se comum compartilhar nas redes sociais as dificuldades relacionadas à saúde mental. Mas cantar a depressão ainda é inadmissível para os sertanejos. A roda-viva dos shows, os amores, a balada, a curtição e os desejos da indústria do entretenimento ainda não permitem aos sertanejos extravasar tal sentimento de crise psicológica e colapso nervoso.

Um dos poucos a ousar fazê-lo foi o artista ainda pouco conhecido Danilo Dunas, numa canção chamada "O Hotel de Hoje" em seu disco de estreia de 2016: "Espero que o nosso filho algum dia entenda/ É o jeito, eu tenho que cumprir a agenda/ Tô trabalhando, mas é por vocês/ De que me serve tanto assédio/ Que importa alcançar a fama/ Se estou à base de remédio/ De novo sem você na cama?/ Eu pago o preço do sucesso/ Sozinho, à luz do abajur/ Um dia ainda eu me despeço/ É dessa maldita vida de glamour".

Dunas está praticamente sozinho na temática, mas alarga as fronteiras do dizível no sertanejo, superando um tabu. O cantor e compositor toca o dedo na ferida, explanando um lado da indústria da música sertaneja sobre o qual grande parte ainda se cala, mesmo quando se fala das doenças mentais.

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