Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Gustavo Alonso
Descrição de chapéu festa junina

Festa de São João privilegia forró 'estilizado' e moderno em relação ao 'pé-de-serra'

Transformação do gênero musical tornou-se um problema quando apareceu o 'forró eletrônico' nos anos 1990

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No início deste mês de abril uma polêmica tomou as redes sociais nordestinas. Todo São João é assim: as prefeituras de Caruaru, em Pernambuco, e Campina Grande, na Paraíba, divulgam a lista dos artistas que se apresentarão nos palcos oficiais, e começam os lamentos por parte deste ou daquele artista e seu público. Quase sempre os mesmos.

Desta vez o lamento foi pela ausência de Jorge de Altinho, artista caruaruense famoso regionalmente por vários sucessos, entre eles a canção "A Capital do Forró", uma homenagem a sua cidade natal. Segundo sua mulher e empresária, o artista não foi contatado pela prefeitura de Caruaru, e sua exclusão do Pátio do Forró foi a primeira em toda sua carreira. Magoado, Altinho lamentou nas redes sociais: "Confesso a vocês, e espero que vocês entendam, que eu não tenho mais clima para cantar no São João esse ano".

Abertura do São João de Caruaru 2019
Abertura da festa de São João em Caruaru em 2019 - Jorge Farias/Divulgação

Jorge de Altinho, de 69 anos, é praticamente desconhecido do público do Sudeste, a não ser pela plateia forrozeira mais aguerrida. Ele faz parte de uma geração de forrozeiros que surgiram nos anos 1980 e 1990 e fizeram muito sucesso regional, mas quase nenhum conseguiu extravasar as fronteiras do Nordeste. Fazem parte dessa geração artistas como Assisão, Petrúcio Amorim, Maciel Melo, Alcymar Monteiro, Novinho da Paraíba, Cristina Amaral, Flavio José e Santanna, entre outros.

Todos esses artistas são hoje associados ao rótulo "forró pé-de-serra". E quase sempre aqueles que lamentam exclusões da festa junina oficial têm sido, nos últimos anos, esses artistas e seu público. Isso acontece pois a prefeitura de Caruaru vem, há alguns anos, buscando diversificar a festa, trazendo artistas pouco associados às temáticas tradicionais de São João.

A abertura terá Elba Ramalho, no dia 4 de junho. No mesmo dia se apresentam Cláudia Leitte e Solange. Num total de 42 atrações, o São João de Caruaru contará com 23 artistas e bandas do chamado forró "estilizado", como Cavaleiros do Forró, Limão com mel, Calcinha Preta, Jonas Esticado, Xand Avião, Magníficos, Weley Safadão e Luan Estilizado. Incluem-se aí os artistas do piseiro, João Gomes, Zé Vaqueiro e Barões da Pisadinha, sucessos nacionais recentes.

O sertanejo é o terceiro gênero com mais artistas, ocupando a programação com sete atrações, entre eles Matheus e Kauan, Simone e Simaria, Zé Neto e Cristiano e Maiara e Maraísa. Haverá ainda espaço para o brega e a música eletrônica, sendo confirmadas as presenças de Priscila Senna e o do DJ Alok na programação. Alceu Valença não foi esquecido e tocará no São João de Caruaru.

Entre os artistas "pé-de-serra", foram chamados Alcymar Monteiro, Azulão, Fulô de Mandacaru, Novinho da Paraíba e Geraldinho Lins. A exclusão de Jorge de Altinho simboliza a gradual diminuição de artistas associados ao forró dito tradicional.

Todos os textos que abordaram esta polêmica chegaram até aqui. A maioria dos escritores e leitores de música, que leem jornais, sites e revistas, parece lamentar mais esta perda do forró tradicional. Todo ano é assim. Mas poucas atitudes são tomadas na prática.

Neste ano, depois de quatro anos de pesquisa, foi anunciada a patrimonialização do forró pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). O documento final defendeu como "matrizes tradicionais do forró" os subgêneros xote, xaxado, baião, coco, forró, toada e arrasta-pé, todos ritmos associados ao que se entende hoje por "pé-de-serra". Isso abriu álibi para alguns radicais pedirem rigor legal como única forma de superar a exclusão.

Sabendo do processo de patrimonialização, o forrozeiro Maciel Melo, também excluído deste São João de Caruaru, pediu em anos anteriores que houvesse uma lei municipal que garantisse espaço ao forró "pé-de-serra" no São João da cidade. A prefeita de Caruaru, Rachel Lyra (PSDB), se manifestou dizendo que a lista ainda não estava completa, podendo haver novas inclusões. A pressão política surtiu efeito de alguma forma. A ver se ela se efetiva.

O curioso é que, ao analisarmos a produção discográfica dos artistas "pé-de-serra", especialmente os que surgiram nos anos 1980, grande parte de suas músicas eram na época desacreditadas como forró. Isso acontecia pois esses artistas não se limitavam a emular o som tradicional, e gravavam canções com baixo, teclados, bateria, guitarra e metais, além de tocarem muitos outros ritmos além do forró tradicional.

O olindinense Jorge de Altinho teve passagens por um grupo de rock —The Big Boys—, uma orquestra de frevo e um conjunto de chorinho —Cavaco & Viola. Ele se identificou musicalmente com o forró quando foi trabalhar no interior do estado em 1974. Incorporou o som de Gonzaga ao que já ouvia e foi modificando a sonoridade do forró tradicional.

Altinho começou a carreira fonográfica em 1980, com o disco "Príncipe do Baião". Ao longo desta década ele foi se afastando da tradição gonzaguiana. E foi muito criticado por se aproximar demasiadamente do som massivo da época, com arranjos que soavam diferentes dos forrós "pé-de-serra". Ano passado, consternado com a morte de Marília Mendonça, uma artista também adorada e criticada no auge do sucesso, Altinho escreveu: "No começo dos anos 1980 as críticas eram para mim, que ‘modernizei’ o forró com a metaleira (...) Eu sempre dava um jeito de despistar e nunca tive coragem de dizer que admiro (sim! Admiro mesmo!) quem ousa fazer diferente. A morte de Marília Mendonça, nesse fim (tomara!) de pandemia, veio carimbar: não há tempo a perder com meia vida…".

Diga-se de passagem que em seu disco de 1984, "Danado de Bom", Luiz Gonzaga também enxertou baixo e bateria em sua obra, de forma que não era um pecado tão grave modernizar o forró. Parecia um caminho natural.

A modernização tornou-se um problema quando apareceu o "forró eletrônico" nos anos 1990. Grupos como Mastruz com Leite, Banda Aquarius, Cavalo de Pau, Mel com Terra e Banda Styllus radicalizaram ainda mais a modernização, tornando-se ainda mais populares que a geração anterior. Logo em seguida uma nova onda de artistas levou adiante essa transformação. Bandas como Magníficos, Calcinha Preta, Limão com Mel, Banda Líbanos, Caviar com Rapadura e Brucelose foram ainda mais longe, tanto na instrumentação, arranjo, melodia e performance —com dançarinas cada vez mais sensuais no palco, por exemplo. Cantores como Frank Aguiar, então muito bem-sucedidos, amplificaram esta vertente popular com sucessos que colaram no ouvido das multidões.

Para combater estes artistas do forró eletrônico, surgiu na virada dos anos 1990 para os anos 2000 a denominação "pé-de-serra", de forma a unificar artistas que tinham como inimigos os modernizadores. E, assim, quem era moderno no passado, tornou-se tradicional. Uma pena, pois a carreira de Jorge de Altinho é muito mais rica do que o rótulo "pé-de-serra" consegue dar conta. E sua exclusão é tão injusta quanto previsível.

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