Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Descrição de chapéu

Sertanejo era gênero de sofrência muito antes de o termo se popularizar

Canções universitárias diversificaram a área e fizeram com que 'música de corno' ganhasse uma categoria própria

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Certos termos são tão usados no presente que parecem que sempre estiveram por aí. É o caso da palavra sofrência, usada para designar uma forma de fazer música sertaneja associada ao melodrama, às separações, às canções popularmente conhecidas como "de corno". Mas, curiosamente, esse termo não era usado nos anos 1980 e 1990, por mais que tenhamos vivido o auge desta estética nessas décadas.

Quando os jovens sertanejos de hoje cantam "Evidências" e "Nuvem de Lágrimas", do repertório de Chitãozinho e Xororó, "É o Amor" e "Coração Está em Pedaços", de Zezé Di Camargo e Luciano, ou "Sonho por Sonho" e "Pense em Mim", de Leandro e Leonardo, "Fuscão Preto", do Trio Parada Dura, "Ainda Ontem Chorei de Saudade", de João Mineiro e Marciano, quase sempre associa-se hoje estas canções ao termo sofrência.

A dupla sertaneja Chitãozinho e Xororó - Lili Martins/Folhapress

São canções que cantam o distanciamento dos amados, a separação involuntária de corpos, a saudade e, quase sempre, a impossibilidade de o amor se concretizar. Mas na época em que foram lançados, esses hits não eram chamados de sofrência. Eram simplesmente música sertaneja.

Pode-se dizer que, desde que a música sertaneja moderna foi inventada, nos anos 1950, a partir da incorporação da guarânia paraguaia, da rancheira mexicana e do chamamé argentino, foi amalgamado também o melodrama, tão comum nesses gêneros. Sem rigor, poderíamos dizer que desde os anos 1950 a música sertaneja foi marcada pela sofrência. Mas por que somente no século 21 essa palavra parece ter se disseminado entre os amantes do gênero?

Penso que isso tem a ver com o fato de que a sofrência tornou-se algo específico na música sertaneja a partir da geração do sertanejo universitário. Antes, toda a música sertaneja era melodramática. A partir de 2005, com o advento dos universitários, a música "de corno", do amor não cumprido, tornou-se um setor da música sertaneja.

Uma das grandes inovações da geração universitária da música sertaneja foi justamente romper com a música "de corno". Criou-se uma "poética do amor afirmativo" e da "farra". É uma poética com letras de canções que estimulam não apenas a superação do amor distante, mas também favorecem encontros fortuitos e breves em festas ou no dia a dia.

Houve uma mudança de 180 graus no sertanejo. Se os sucessos de Milionário e José Rico, Zezé Di Camargo e Luciano, Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo eram basicamente com canções "de corno", que cantavam a distância da pessoa amada e a impossibilidade da realização amorosa, o sertanejo universitário subverteu essa lógica. Desde o advento do sertanejo universitário se busca a concretização do amor; há um hedonismo individualisto que faz com que o sujeito não sofra se a relação amorosa não se concretizar.

Vários artistas gravaram canções na temática do amor afirmativo, no qual a relação amorosa se completa, para felicidade dos amantes. Alguns lastrearam sua carreira nessa poética. É o caso da dupla Victor e Leo, por exemplo. Em "Fada", de 2008, a concretização do amor distante é possível e o sofrimento tem fim. "Algo aqui me diz que essa paixão não é em vão/ O meu sentimento é bem mais que uma emoção/ Eu espero o tempo que for/ Minha fada do amor."

Em "Tem que Ser Você", do mesmo ano, a dupla não esconde o lirismo positivo. "Agora é a hora de dizer/ Que hoje eu te amo/ Não vou negar/ Que outra pessoa não servirá/ Tem que ser você."

A dupla Jorge e Mateus também iniciou sua carreira com baladas afirmativas, como "Amo Noite e Dia", de 2010. "Tem um pedaço do meu peito bem colado ao teu/ Alguma chave, algum segredo, que me prende ao seu/ Um jeito perigoso de me conquistar/ Teu jeito tão gostoso de me abraçar."

César Menotti e Fabiano também não quiseram saber de distância e solidão em "Leilão", de 2005. "Eu vou fazer um leilão/ Quem dá mais pelo meu coração/ [...] Estou aqui tão perto/ Me arremate pra você."

Em "Tarde Demais", sucesso de João Bosco e Vinícius em 2010, também se acreditava no amor afirmativo. "Pois quando está sozinha liga toda hora/ Tá faltando carinho e de saudade chora/ Aceita de uma vez essa vontade louca/ De me amar."

O otimismo prossegue em "Pássaro de Fogo", de 2009, uma das canções mais famosas do repertório de Paula Fernandes. "Não diga que não/ Não negue a você/ Um novo amor/ Uma nova paixão/ Diz pra mim/ [...] Permita sentir." O maior sucesso da geração universitária, "Ai Se Eu Te Pego", de 2011, de Michel Teló, celebra um encontro possível, numa balada, fruto do amor fortuito e passageiro. Não se sofre por amor.

Foi a partir da geração universitária, com o surgimento de uma poética afirmativa em relação ao amor e aos encontros amorosos, que instaurou-se no gênero uma nova forma de falar dos relacionamentos. Desde então a música sertaneja deixou de ser associada integralmente ao melodrama, e parece ter surgido aí a necessidade de determinar de que tipo de música sertaneja estava se falando. Ainda se faz música "de corno" no sertanejo. Mas esse tipo de produção agora é um subgênero dentro da música sertaneja.

Nos dias de hoje, quase sempre usamos o termo sofrência como um selo de qualidade, como se quisesse referendar que tal canção faz parte de uma tradição sertaneja. Seja como for, o surgimento da palavra mostra sua historicidade ao ilustrar as batalhas em torno das disputas estéticas da música sertaneja.

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