Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Breno Silveira moldou imagem dos sertanejos com ufanismo da era Lula

'Dois Filhos de Francisco' padronizou histórias de músicos caipiras e legitimou discurso de ascensão social da classe C

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O diretor Breno Silveira morreu precocemente aos 58 anos no último sábado (14). Foi uma grande perda para o cinema nacional, mas também para a música sertaneja. Em quase todos os obituários foi lembrado que Breno dirigiu um filme que marcou o gênero, "Dois Filhos de Francisco", sobre a trajetória de Zezé Di Camargo e Luciano.

Mas não foi fácil para o diretor aceitar fazer o filme. Topar a empreitada de filmar sertanejos teve custos para Silveira, morador do Rio de Janeiro na época. "Meus amigos não me reconheciam quando entravam no carro e viam CDs da dupla. Eles me olhavam estranho", disse ele em entrevista à Folha.

Lançado em 2005, "Dois Filhos de Francisco" cumpriu um triplo papel: a) reconfigurou, ainda que parcialmente, a visão da crítica sobre a música sertaneja; b) transformou a geração sertaneja dos anos 1990 em tradição; c) serviu de plataforma para o discurso legitimador da classe C lulista dos anos 2000.

Cena do filme 'Dois Filhos de Francisco', de Breno Silveira, que narra a vida da dupla formada por Zezé di Camargo e seu irmão Luciano. Em cena, os atores (da esq. para a dir.) Dablio Moreira, Ângelo Antônio e Marcos Henrique - Vantoen Pereira Jr./Divulgação

Aos olhos de hoje, parece que o filme de Breno Silveira foi um marco inexorável da cultura brasileira, e que tanto críticos quanto público adoraram o filme entusiasmadamente. Diante da morte do diretor, o cantor Luciano enfatizou o novo lugar ocupado pela música sertaneja a partir do filme: "Ele foi um divisor de águas na vida de Zezé Di Camargo e Luciano. Éramos conhecidos, mas não tínhamos o respeito da crítica séria… A visão dele do nosso pai, como conduziu [o filme], trouxe isso pra nós", disse Luciano. É importante demarcar que este dito respeito da crítica, embora tenha sido alargado pelo filme, ainda assim ampliou-se de forma limitada.

O filme de Breno Silveira atingiu mais de 5 milhões de espectadores, batendo o recorde de público desde a retomada do cinema nacional. Tamanho público não era atingido por um filme brasileiro desde os anos 1980, e o longa de Zezé e Luciano só seria superado dois anos mais tarde por "Tropa de Elite", de José Padilha, outro marco.

O curioso é que, mesmo em se tratando de Zezé Di Camargo e Luciano, os mais de 5 milhões de espectadores eram um número espantoso. Até o lançamento de "Dois Filhos de Francisco" em 2005, a dupla havia vendido cerca de 22 milhões de discos na carreira. Mas nunca havia vendido 5 milhões de cópias de um único CD ou LP. No auge da carreira, no início dos anos 1990, a vendagem anual beirava no máximo a casa dos 3 milhões de cópias. Assim, o público que foi ver a dupla no cinema era muito maior do que seu público comprador de discos.

Não há dúvida de que o filme de Breno Silveira foi sucesso de público. A relação com a crítica foi mais ambígua.

A repercussão no 33º Festival de Cinema de Gramado serve como caso exemplar. O filme teve exibição consagradora diante do público do festival naquele ano. Por outro lado, os especialistas de um dos festivais mais respeitados do Brasil não ficaram tão entusiasmados. O júri do Festival de Gramado não concedeu nem sequer um prêmio ao filme. Os títulos de melhor filme e melhor diretor foram para "Gaijin – Ama-me Como Sou", de Tizuka Yamasaki. O prêmio de melhor roteiro, para "Diário de um Novo Mundo", de Pedro Zimmermann.

Por outro lado, a Academia Brasileira de Cinema concedeu a "Dois Filhos de Francisco" os prêmios de melhor ator —para Ângelo Antônio—, melhor ator coadjuvante —José Dumont— e melhor atriz coadjuvante —Paloma Duarte. Embora não tenha ganhado o título de melhor filme do ano —perdido para "Cinema, Aspirinas e Urubus", de Marcelo Gomes—, a película foi avalizada por outro júri, o do Ministério da Cultura. Especialistas associados à Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura indicaram "Dois Filhos de Francisco" para concorrer ao Oscar de filme estrangeiro do ano seguinte.

Mesmo com aval apenas parcial da crítica, o filme cumpriu um papel no gênero sertanejo. Ele foi importante para transformar a geração dos anos 1990 em tradição. Em 2005, ano de lançamento do filme, começava a surgir o que se convencionou chamar de sertanejo universitário, e artistas como Victor e Leo, Jorge e Mateus, Cesar Menotti e Fabiano e João Bosco e Vinícius apareciam para o grande público. A geração de Zezé e Luciano, Chitãozinho e Xororó e Leandro e Leonardo era passada para trás.

De tempos em tempos, há esse conflito geracional na música sertaneja. Resta aos "ultrapassados" apelar à tradição, ou seja, em vez de defender a modernização da música sertaneja como fizeram no passado, ver a si mesmos com bastiões da tradição.

O filme de Breno Silveira criou a forma pela qual os sertanejos dos anos 1990 foram se filiando à tradição. Ele demarcou os pontos de inflexão por meio dos quais os sertanejos passaram a contar suas próprias histórias: 1) sempre relembrando a vida interiorana; 2) ênfase na pobreza e na luta para superá-la pelo trabalho individual; 3) o sucesso como símbolo mágico de ascensão social. Tudo isso está presente em "Dois Filhos de Francisco". A fórmula narrativa de Breno Silveira tornou-se modelo para grande parte dos filmes sertanejos posteriores.

O cineasta Breno Silveira
O cineasta Breno Silveira, diretor de 'Dois Filhos de Francisco' - Divulgação

Esta fórmula reaparece em um documentário intitulado "Nascemos para Cantar", de 2010, sobre a dupla Chitãozinho e Xororó. No mesmo ano foi lançado o DVD "Victor e Leo – A História", no qual a dupla de sertanejo universitário conta sua trajetória, com a mesma fórmula narrativa de Breno Silveira.

Em 2012, o cantor Daniel, da dupla com o finado João Paulo, celebrou três décadas de sucesso com o show "Daniel – 30 Anos, o Musical". A terra, a roça, a pobreza, o elo com a tradição e o sucesso espetacular: todos os marcos de Breno Silveira foram reproduzidos. O show "Bem Sertanejo", musical capitaneado por Michel Teló por quase uma década em todo o Brasil, também tinha essa narrativa.

É importante comparar essa forma de contar a vida dos sertanejos com a produção audiovisual da primeira metade dos anos 1990. Praticamente nenhum dos vídeos sertanejos dessa época fazia referência ao mundo rural pobre. E, quando isso acontecia, era de forma fortuita, e não o eixo da narrativa como em "Dois Filhos de Francisco".

O especial de Leandro e Leonardo na TV Globo, com periodicidade mensal entre abril e dezembro de 1992, abordou apenas perifericamente as origens da dupla em Goianápolis, em Goiás. Nesse mesmo ano foi produzido um especial de Natal com a dupla. De acordo com a modernidade desejada então pelos sertanejos dos anos 1990, o episódio foi gravado na Disneylândia, nos Estados Unidos.

Outros vídeos da época mostravam ricos rodeios, relacionamentos amorosos e até praias, mas quase nunca focavam origens agrárias pobres. Mesmo quando fazendas apareciam, como no clipe de "É o Amor", gravado em 1991, de Zezé e Luciano, ou ainda nos clipes de "Página Virada", de 1989, e "Ela Não Vai Mais Voltar", de 1994, ambas gravadas por Chitãozinho e Xororó, as referências eram sempre fazendas ricas, aviões, caminhões, cavalos de raça e moda country americanizada. Nunca estavam em jogo a pobreza ou a ligação com as raízes humildes do camponês. Abordar as origens simplórias campesinas ainda não era vendável na primeira metade dos anos 1990.

Por tudo isso Breno Silveira foi de fato um marco da música sertaneja. Ele inventou, ao lado da roteirista Patrícia Andrade, uma forma de contar a história do gênero que foi vista como autêntica pelos próprios sertanejos. Curioso que tenha sido um brasiliense, que morou grande parte da vida no Rio de Janeiro, que tenha ensinado aos sertanejos como contar suas próprias histórias.

Em "Dois Filhos de Francisco", dois camponeses pobres são alçados a cantores de sucesso em função de um pai obstinado, trabalhador e um tanto doido. Segundo o conto de fadas de Breno Silveira, o sucesso da dupla teria começado por causa da teimosia do velho Francisco.

Na cena final que ficou famosa, o pai compra inúmeras fichas telefônicas para pedir que a música dos filhos tocasse nas rádios de sua região. Francisco, que desde a infância buscava forjar o sucesso dos filhos, era o agente mágico do sucesso nacional da dupla. Há um quê de místico nessa construção narrativa, um conto de fadas que se aproximava muito do discurso de ascensão social na época do governo Lula.

Nos anos 2000, poucos foram os que não se empolgaram com a ascensão da chamada classe C, cuja proposta de "self‑made man" se instaurou no Brasil através da metáfora do guerreiro, tão comuns durante os anos de ufanismo da era Lula.

A trajetória mostrada no filme era exatamente aquela do "brasileiro que não desiste nunca", do batalhador, do trabalhador que consegue sair da pobreza por mérito próprio. Breno Silveira uniu a narrativa de sucesso pessoal da música sertaneja à narrativa lulista de ascensão social, amálgama que hoje parece ser renegada por ambos os lados. Sertanejos e lulistas parecem não se entender em 2022, mas isso já foi possível.

Parecem muito distantes os dias em que Zezé Di Camargo e Luciano cantaram um jingle sobre reforma agrária, a música chamada "Meu País", em horário eleitoral de Lula em 2002. A dupla também participou de diversos showmícios do PT naquele pleito. Muito mais mais eficaz do que filmes-propaganda como "Lula, o Filho do Brasil", lançado em 2009 e dirigido por Fabio Barreto, o filme de Breno Silveira também abordou uma história real, mas contada por um então novo prisma.

Em meio a momentos críticos do mensalão em 2005, "Dois Filhos de Francisco" construiu uma fórmula narrativa que foi importante para a música sertaneja e também para o segundo mandato do governo Lula, durante o qual a retórica de ascensão social ficou mais explícita. Essa grande simbiose talvez explique sociologicamente o sucesso de "Dois Filhos de Francisco", para além dos méritos estéticos do filme em si.

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