Gustavo Alonso

Doutor em história, é autor de 'Cowboys do Asfalto: Música Sertaneja e Modernização Brasileira' e 'Simonal: Quem Não Tem Swing Morre com a Boca Cheia de Formiga'.

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Caetano, Gil e outros se safaram após apoiarem censura a biografias

Nos EUA, o princípio é diferente: não se criminaliza um trabalho sério e árduo por mais que desagrade

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Nesta semana, algo insólito aconteceu na lista da Amazon das biografias de artistas pop. A obra de um autor brasileiro, o carioca Sergio Farias, apareceu entre os 20 livros mais vendidos do gigante americano no último sábado (4). Trata-se de uma biografia de Peter Tork, baixista e cantor da banda The Monkees.

Sergio Farias, um aficionado da banda americana, também é um beatlemaníaco que já escreveu livros sobre John Lennon e Ringo Starr. Pesquisador cuidadoso e dedicado, Farias ganhou espaço na lista da Amazon tanto pela qualidade de seu trabalho quanto por sua originalidade.

Conjunto de rock The Monkees, nos anos 1960 - Reprodução

Uma das mais famosas bandas dos anos 1960, os Monkees venderam mais de 70 milhões de discos ao redor do mundo. Todos os outros integrantes da banda, David Jones (voz e percussão), Micky Dolenz (voz e bateria), e Mike Nesmith (guitarra e voz), já tinham autobiografias e biografias circulando no mercado americano. Menos Peter Tork.

Se é comum encontrar autores estrangeiros nas listas de livros mais vendidos no Brasil, o oposto é algo raríssimo. O caso de Sergio Farias chama ainda mais atenção porque a obra foi publicada por uma editora pequena, que praticamente não trabalhou na divulgação da biografia num mercado tão competitivo. Mas o livro ganhou o gosto dos fãs de Peter Tork e dos Monkees. E caiu também no radar da família do artista.

Quando confrontados com a existência da biografia não autorizada, a família afirmou em um post do Facebook que a obra não foi idealizada pelo próprio artista, morto em 2019: "Por respeito aos sentimentos pessoais de Peter, a família/herdeiros imediatos avisam que Peter nunca endossou nem autorizou nenhum projeto escrito sobre sua vida. [...] Ele valorizava profundamente sua privacidade e a de sua família. [...] Embora um autor possa escrever legalmente sobre a vida de uma pessoa pública, o endosso e/ou autorização de tal projeto é uma outra questão".

O livro de Sergio Farias, intitulado "Love Is Understanding: The Life and Times of Peter Tork and The Monkees", ou amor é compreensão, a vida e os tempos de Peter Tork e os Monkees, é uma biografia não autorizada, o que, em tese, lhe confere mais idoneidade. Uma biografia que tenha como alvo um mínimo de imparcialidade dificilmente atende aos interesses do biografado ou de sua família.

Uma biografia de qualidade deve ainda tocar aspectos privados sensíveis, mas não se reduz a uma revista de fofoca. O bom biógrafo consegue, através de seu personagem, iluminar uma época e colorir a história com pessoas de carne e osso. Pessoas reais possuem grandiosidades e vacilos, atos de coragem e também de covardia, grandeza e mesquinharias. Por trás dos gênios publicamente louvados, o bom biógrafo mostra os paroxismos e descaminhos de trajetórias complexas e tortuosas. Sem buscar ser juiz, Sergio Farias faz tudo isso com qualidade e independência, o que lhe outorga ainda mais valor.

De alguma forma, até a família do artista percebeu o valor do trabalho de Farias ao reconhecer que qualquer autor pode escrever legalmente sobre a vida de uma pessoa pública. De fato, a família não é obrigada a legitimar um trabalho do qual não fez parte diretamente. Mas, por outro lado, isso não quer dizer que a obra não tenha valor por não ser autorizada.

Trata-se de um princípio básico que deve servir de guia para todos aqueles que têm uma vida pública. Nos Estados Unidos, isso é senso comum, até mesmo entre os familiares de artistas mortos, como é o caso de Peter Tork. No Brasil não é assim, e muitos artistas confundem biografia com uma lógica patrimonialista adulatória.

Em 2015, vivemos o auge de uma longa perseguição a biógrafos independentes no Brasil. Sob o pretexto de "respeito a privacidade", músicos do quilate de Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento, Djavan, Gilberto Gil, Erasmo e Roberto Carlos mobilizaram o grupo Procure Saber, inicialmente uma instituição criada para cuidar de direitos autorais, para perseguir a escrita de biografias não autorizadas.

Caetano Veloso durante show da turnê 'Meu Coco' em SP
Caetano Veloso durante show da turnê 'Meu Coco' em São Paulo - Espaço das Américas/Divulgação

Na época, a maioria deles nem sequer tinha uma biografia não autorizada no mercado, mas se viram no direito de pressionar o Congresso Nacional pelo endurecimento de leis contra um gênero literário tão antigo quanto o cristianismo. Queriam pura e simplesmente controlar a história e condenar a pesquisa biográfica séria. Na visão dos artistas-censores da MPB, toda biografia deveria ser previamente autorizada pelo biografado.

O principal alvo na época foi o biógrafo Paulo Cesar de Araújo, que teve seu livro "Roberto Carlos em Detalhes" censurado pela Justiça em 2007, após o Rei entrar com um pedido de proibição de circulação da obra. Os grandes artistas da MPB, que lutaram contra a mordaça da ditadura, engajaram-se na batalha para calar o biógrafo de Roberto Carlos, fazendo papel de bobos da corte.

Por anos, os biógrafos sofreram com a censura dos artistas, medrosos de terem suas imagens públicas confrontadas. E tiveram de lidar com a autocensura das editoras que, temendo processos, tolhiam qualquer informação mais relevante e polêmica.

Claro estava no debate de então que não se tratava de endossar os maus biógrafos. Aqueles que buscam caluniar ou ofender um biografado devem, e podem legalmente, ser punidos. Mas uma informação verdadeira e pertinente não deveria ser vetada apenas porque um biografado não quer vê-la publicada.

Imaginemos como ficaria a biografia de Bolsonaro ou Lula se eles pudessem controlar tudo que seu biógrafo escrevesse. O livro se tornaria uma hagiografia, aquela escrita da Idade Média que buscava exaltar santos. Jamais seria uma biografia. De forma que, se fosse estendido para toda a sociedade, o que artistas da MPB pediam era a pura e simples mordaça.

Hoje esse debate parece ter sido esquecido. Poucos se lembram que, diante da tola polêmica, o Supremo Tribunal Federal foi chamado para dar seu veredito em 2015. Ficou decidido o óbvio. Nas palavras da ministra Carmen Lucia, "autorização prévia para biografia constitui censura prévia particular". O STF deu razão aos biógrafos, que passaram a não mais precisar do aval de biografados ou de suas famílias para escrever livros, roteiros, filmes, peças etc.

De lá para cá, muita coisa mudou para os biógrafos, que conseguiram mais segurança para publicar seus livros. Mas não se ouviu um pio sequer de autocrítica por parte dos grandes artistas da MPB.

Em fins do ano passado, o autor Paulo Cesar de Araújo finalmente publicou sua obra sobre o rei, intitulada "Roberto Carlos Outra Vez", depois de 15 anos de desventuras. Sintomaticamente, Caetano, Gil, Chico, Djavan, Milton, Roberto e Erasmo nada comentaram sobre a excelente obra.

Chama a atenção que tal passada de pano tenha acontecido em conluio com jornalistas tarimbados. Caetano e Gil estiveram no programa Roda Viva depois da publicação da obra de Araújo. Debateram diante de uma roda amiga de entrevistadores que os divinizou. E ninguém perguntou sobre o episódio de censura da qual os gênios tropicalistas fizeram parte.

O caso de Gilberto Gil chama ainda mais atenção, pois o ex-ministro foi ao Roda Viva na condição de mais novo imortal da Academia Brasileira de Letras. Espanta que um imortal tenha se colocado de forma tão gritante contra livros e não tenha sido questionado por isso diante de tão argutos entrevistadores.

É nesse sentido que a manifestação pública da família de Peter Tork ilustra uma grande diferença entre o mercado biográfico americano e o nacional. Lá não se questiona a priori o trabalho de um biógrafo. Nos Estados Unidos não se criminaliza um trabalho sério e árduo. Parte-se do pressuposto civilizado de que todo mundo é livre para fazer qualquer atividade, por mais que desagrade a outrem, sem com isso incorrer necessariamente em atividade ilegal.

Seria bom que também fosse assim no Brasil. Para isso faz-se necessário a autocrítica de Caetano, Gil, Chico, Milton, Djavan, Roberto, Erasmo e outros. A autocrítica, hoje tão desejada no mundo político, também se mostra indispensável no mundo cultural. Resta saber se esses gênios da música brasileira se mostrarão à altura de suas obras e perceberão a bola fora que deram no passado. Nunca é tarde para mudar.​

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