Nesta quarta-feira (17), houve uma comoção na cidade do Recife. O cantor João Gomes gravou seu DVD em pleno Marco Zero, no centro da capital, causando transtornos tanto na locomoção da cidade quanto na identidade pernambucana. Desde o Carnaval de 2020, antes da pandemia, não se via tanta gente espremida diante de um palco no centro histórico do Recife. As imagens aéreas são impressionantes.
Em tempos de cultura fragmentada, pode ser que você não saiba quem é Gomes. O rapaz de 20 anos, nascido em Serrita, interior de Pernambuco, é um dos principais nomes do piseiro, gênero que mistura forró com música eletrônica, influências de bregafunk, arrocha e sertanejo.
Diferencia-se do forró eletrônico feito dos anos 1990 aos anos 2010 pois nas performances do piseiro quase nunca há dançarinas no palco e a música é mais conduzida em sintetizadores e percussão eletrônica do que por uma banda tradicional. Fazem parte deste novo gênero musical artistas como Zé Vaqueiro, Vitor Fernandes, Tarcísio do Acordeon e os Barões da Pisadinha, entre outros. Desde 2019 o piseiro vem furando o monopólio sertanejo na música popular massiva brasileira.
A carreira do jovem Gomes é curta: tem apenas dois discos lançados, "Eu Tenho a Senha" (2021) e "Digo ou Não Digo" (2022), mas a comoção que vem causando pelo Nordeste é espantosa. De fato, seu sucesso é maior entre as classes populares, mas entre os ricos também há grande adesão. Já entre as classes médias ilustradas, houve quem se espantasse que um "desconhecido" tenha gerado tamanha comoção na cidade.
Nas redes sociais, vi professores universitários pernambucanos se perguntando quem era o ilustre cantor que tomava de assalto suas mídias sociais, fenômeno que também aconteceu quando Cristiano Araújo e Marília Mendonça morreram. Nossa intelectualidade anda bem distante do gosto das multidões, reforçando nosso apartheid cultural.
Gomes não pode mais ser ignorado pois, além de ele ser um sucesso nas redes fragmentadas do mundo digital, hoje está até em novela global. "Eu Tenho a Senha", composição do próprio cantor, toca na trilha sonora de Pantanal sempre associada aos cowboys da novela.
A letra reforça esse elo: "Levanta cedo pra labuta que eu tô pronto / Eu muito conto com meu Deus que tá no céu / Eu tenho a senha pra correr em todo canto / Humildade e a disciplina do sermão que mãe me deu / Eu tenho a senha e meu cavalo já tá pronto / E em cima da cela eu mostro que eu mereço meu troféu".
O show de gravação do DVD "Acredite" marcou Recife primeiro porque começou num horário muito inconveniente, às 18h, causando caos na cidade. Milhares de pessoas se deslocaram ao centro histórico da capital, causando transtornos numa cidade com trânsito já demasiado complicado. E as autoridades parecem ter sido ou incompetentes para lidar com tamanho evento, que presenciou diversos casos de roubos e até arrastões, ou negligentes, pois demonstraram não ter dimensão do tamanho do artista. Nos dois casos foi grave o desleixo dos governantes.
O show começou com fogos de artifício enquanto Gomes subiu ao palco, usando um chapéu de couro de vaqueiro. Todo o DVD era baseado na intencional tomada da capital por um vaqueiro do interior. As imagens de sua infância em Serrita buscavam mostrar a vitória do interiorano na capital. Uma estrutura de taipa foi montada no Marco Zero para fazer alusão à casa onde o artista morou no sertão.
O diminuto município de Serrita é um lugar mítico na cultura tradicional pernambucana: foi lá que Luiz Gonzaga e o padre João Câncio criaram a "missa do vaqueiro", em 1970. Gomes, cujo timbre vocal grave remete bastante a Gonzagão, faz a releitura das vaquejadas nordestinas para o mundo do digital, da eletrônica e da cultura massiva. O sucesso é espantoso até para o rapaz, que no último São João de Caruaru esvaiu-se em lágrimas diante da multidão que o aplaudia.
Como principal articulador do piseiro, Gomes buscou fazer elos claros com outros gêneros musicais nas participações especiais do DVD. Primeiro reforçou a aliança com os artistas do piseiro, como Vitor Fernandes e Tarcísio do Acordeon. A participação de Yara Tchê selou o elo com o forró eletrônico e a música sertaneja. Com o funk e o rap o elo veio através da participação ao lado do carioca L7nnon.
A MPB não foi esquecida. Vanessa da Mata dividiu os vocais em "Amado". Com Fagner, Gomes cantou "Deslizes" e "Borbulhas de Amor". "O sucesso é muito merecido. Obrigado a você", disse Fagner. "Ele dança um piseiro bom arretado, só não quis mostrar a vocês", brincou Gomes.
O sucesso de Gomes andou incomodando a crítica cultural. Um dos mais renomados jornalistas culturais do Recife, José Teles, autor de livros importantes sobre o manguebeat e as transformações musicais pernambucanas, não viu com bons olhos a tomada da capital: "O município deveria receber pela cessão do local para o cantor. Alega-se que tais shows com cantores popularescos, e bombados na web, divulgam a cidade. O Recife tem beleza, história e cultura que dispensam tal tipo de divulgação".
Com seu hibridismo musical e popularidade que não passam por canais tradicionais de validação da cultura pernambucana, João Gomes incomoda. Não seria essa exatamente a função de um artista?
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