Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu Ásia

'Trese', série da Netflix, vale a pena por protagonista feminina maravilhosa

Personagem da animação filipina é uma fusão de guerreira com xamã capaz de se comunicar com espíritos

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Às vezes um ciborgue toma o protagonismo de uma heroína, noutras um detetive justiceiro vira mulher pela força dos tempos. É o caso de "Trese", série de animação filipina lançada pela Netflix.

A protagonista da série é uma detetive durona que circula pela capital Manilla resolvendo crimes, mas não foi assim desde o início. No briefing original enviado pelo autor Budjette Tan ao seu parceiro de criação, o ilustrador Kajo Baldisimo, o herói das aventuras era um homem, inspirado em Batman e John Constantine. Foi só ao receber o primeiro desenho do protagonista masculino que Tan retrucou ao parceiro: "E se Trese fosse uma mulher?". A dupla (hoje showrunners da série) desenvolveu então a história em quadrinhos da detetive com poderes sobrenaturais, cujo primeiro volume saiu em 2005.

Mas o interesse em "Trese" ultrapassa em muito o fato de a protagonista ser uma mulher durona que não aceita não como resposta e passa seu tempo fazendo justiça –mesmo que isso envolva esquartejar monstros e homens com igual facilidade.

cartaz de filme
Cartaz da série de animação filipina 'Trese' (2021), disponível na Netflix - Divulgação

Alexandra Trese é uma fusão da figura clássica do "mandirigma" –o guerreiro filipino, geralmente masculino– com a da "babaylan" –a xamã e curandeira capaz de se comunicar com os espíritos dos mortos e da natureza. Na série, a batalha de Trese se trava contra os "aswang", termo que identifica todo tipo de espírito maléfico na cultura filipina, incluindo bruxas, vampiros, comedores de cadáveres e até monstros que sugam fetos do ventre de mulheres grávidas.

O que "Trese" faz é fazer esses mitos ecoarem em figuras da sociedade contemporânea e, assim, abordar questões sócio-políticas urgentes. As Filipinas são um país onde a violência ocupa lugar de destaque nas manchetes há décadas e a situação em Manilla piorou muito com a chegada do populista Rodrigo Duterte ao poder, em 2016. Sua "guerra às drogas" significou, na visão de muitos, carta branca para execuções pela polícia.

Os problemas abordados em "Trese", contudo, não se limitam ao contexto filipino. Os monstros da série são policiais brutais, gangues envolvidas em tráfico de armas, um prefeito corrupto que entrega a população pobre para ser devorada por monstros em troca de poder. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.

Logo no primeiro episódio, a pane num trem força os passageiros a saírem dos vagões e três garotas se veem sozinhas numa parte escura do trilho, onde são surpreendidas por uma figura masculina que em instantes se multiplica num bando de seres monstruosos. É a metáfora perfeita para qualquer mulher que já tenha cruzado com um homem numa rua escura.

Apesar do tema, é interessante que a série opte por não exibir a violência contra a mulher na tela. "Trese" usa elipses muito bem-vindas para diminuir a exploração visual da violência contra o corpo feminino, algo que tem incomodado em similares de gênero brasileiros da mesma Netflix, como "Bom Dia, Verônica".

Os acenos a temas pertinentes à violência contra a mulher são frequentes. O primeiro mistério tem como pano de fundo um feminicídio, com a presença do espírito de uma mulher assassinada pelo amante. Mais adiante aparece a figura do "tiyanak", uma criatura vampiresca que assume a forma de um bebê recém-nascido para atrair suas vítimas. Na série, o tiyanak é um bebê abortado que volta para assombrar a mulher que se livrou dele.

O aborto é tópico delicado nas Filipinas, onde mais de 80% da população se identifica como católica, fruto da colonização pelos espanhóis no século 16. A interrupção da gravidez é ilegal e amplamente rejeitada culturalmente, ainda que milhares de mulheres o façam secretamente a cada ano. Até por isso, chama atenção a combinação dos valores religiosos com a mitologia dos povos originários.

A série é falada em inglês, mas as mandingas de Trese são feitas em talalang, o idioma nativo. Tenho dificuldade de buscar na memória exemplos na produção audiovisual brasileira em que as cerimônias e crenças dos nossos povos originários tenham sido usadas como um elemento do bem –e não como sinônimo de magia negra pelo anti-herói.

"Trese" prova que é possível produzir conteúdo de exportação com autenticidade e carregando o DNA do país originário. E que temos muito que aprender com nossos colegas asiáticos, com quem compartilhamos muito mais do que a proximidade com a linha do Equador.

E se nada disso interessar, "Trese" vale o passeio pela instigante Manilla e, claro, pelo prazer de ver uma mulher maravilhosa fazer justiça com as próprias mãos num país jogado às traças da corrupção e da maldade.

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