Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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'Ataque de Cães' e 'First Cow' subvertem a perspectiva dos faroestes

Diretoras mantém protagonismo masculino, mas abordam gênero com linguagens e sutilezas distintas

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Depois de ter sido o filme mais visto do streaming na semana passada, com uma audiência estimada de 13 milhões de domicílios, o western "Ataque dos Cães" despontou como favorito da temporada norte-americana de premiações ao levar as principais láureas da crítica de Nova York pelo NY Film Critics Circle.

Para além do mérito do próprio filme —o primeiro de Jane Campion dez anos depois de corroteirizar e dirigir a maravilhosa série "Top of the Lake", disponível na HBO— chama a atenção o sucesso de mais um western dirigido por uma mulher. No ano passado, o mesmo prêmio da crítica havia sido entregue a "First Cow – A Primeira Vaca da América", de Kelly Reichardt, uma unanimidade nas listas de melhores do ano.

O gênero do western foi consagrado por diretores homens como John Ford e Sergio Leone, que instauraram no imaginário popular as silhuetas de John Wayne e Clint Eastwood como ícones do ideal masculino. Sob o pano de fundo do descampado velho oeste americano, caubóis eram a encarnação da força e da justiça, os defensores dos valores morais contra os nativos ameaçadores e os brancos fora da lei.

É essa masculinidade que os western dirigidos por mulheres vem pôr à prova. Em vez de glorificar a figura mítica do caubói durão e independente, o que vemos é um enfrentamento dessa masculinidade tóxica que pode muitas vezes sair pela culatra quando homens tentam "provar que são homens". Vale aqui um aceno rápido a "Domando o Destino", de 2017 e disponível na Netflix, dirigido por Chloé Zhao —de "Nomadland" e "Eternos"—, que aborda o quanto pode ser mortal o machismo impregnado na cultura caubói.

"Ataque dos Cães" é exemplar ao fazer um retrato da masculinidade rude e homofóbica do início do século 20, que parecia guiar as relações pessoais pela austeridade desértica e montanhosa que os cercava. Do estado de Montana empoeirado de "Ataque" para o Oregon campestre de "First Cow", o resultado é o mesmo: uma paisagem rude que revela caubóis muito mais próximos da realidade histórica que hoje conhecemos – homens fisicamente sobrecarregados, subnutridos e mal pagos.

Os dois filmes são hábeis em escapar dos estereótipos do gênero: não há juízes ou justiceiros, não há tiroteios. Quando um personagem de Campion abre uma caixa de madeira, não é um revólver que encontra, e sim uma revista de homens nus. Esse objeto, contudo, talvez represente um elemento que essas novas leituras pegam emprestado dos clássicos: o desejo e como ele pode trair os nossos sentidos.

Se o forasteiro tradicional quer algo que não pode ter —a mulher proibida em "Por um Punhado de Dólares" (1964) ou desaparecida em "Rastros de Ódio" (1956)—, em "Ataque de Cães" é o desejo de Phil, vivido por Benedict Cumberbatch, que o põe à mercê de Peter —Kodi Smit-McPhee.

"First Cow" explora uma dinâmica similar: o chefe local —de quem os protagonistas Cookie (John Magaro) e King-Lu (Orion Lee) roubam leite— tem a chance de os desmascarar quando experimenta os bolinhos. Mas não o faz. É possível ver na belíssima cena —que ecoa as madeleines de Proust e, por que não, a cena final de "Ratatouille" – uma lição importante sobre nossa disposição à fantasia: mais vale embarcar numa viagem de memória a uma Londres distante do que reconhecer a presença de leite no bolinho.

No que se refere à estética western, as duas diretoras exploram o gênero de forma bem distinta, o que fica claro logo nas primeiras cenas de cada filme. Se "Ataque" opta por exibir logo nos primeiros planos uma tomada ampla de um grande rebanho bovino, "First Cow" vai para o extremo oposto ao fixar a imagem surreal de uma única vaca sendo transportada numa pequena embarcação.

Reichardt seguirá nessa toada de enquadramentos mais pessoais, destacando as expressões de seus personagens. Enquanto Campion será mais fiel à cinematografia clássica, investindo nos planos abertos que ajudaram a eternizar a paisagem do velho oeste americano. A primeira aparição de Phil, como uma silhueta solitária enquadrada por uma janela, não deixa de ser uma homenagem à imagem icônica de John Wayne num clássico de John Ford.

Mas o que talvez mais salte aos olhos na tela é a presença de homens: são westerns dirigidos por mulheres cujo protagonismo é masculino.

Coincidência ou não, ambos se baseiam em livros escritos por homens, obras originais com as quais as duas diretoras trabalham cada uma a seu modo. Reichardt é bastante fiel à obra original, "The Half-Life" (2004, não lançado no Brasil), a ponto de ter escrito o roteiro com o próprio autor Jonathan Raymond.

Já Campion adicionou diversas camadas ao romance homônimo de Thomas Savage (1967, também não lançado no Brasil). Questões não desenvolvidas claramente no livro, como a sexualidade do protagonista, são em "Ataque" ressaltadas pelos tempos longos e as sugestões criadas pela arrebatadora trilha sonora de Jonny Greenwood, do Radiohead.

Diferentemente de Reichardt, que carrega a tensão do filme com o perigo de descoberta do crime dos protagonistas, Campion constrói uma teia complexa com personagens opacos que intrigam o espectador desde o início.

Os dois filmes, contudo, têm protagonistas inegavelmente desajustados. Homens que destoam do ambiente, que não cabem na forma de masculinidade colocada à sua disposição pela sociedade a que pertencem. E talvez resida aí o maior interesse na releitura feminina feita nesses westerns recentes.

Não é a primeira vez que mulheres dirigem westerns. Lois Weber, Anita Loos, Lina Wertmüller e Maggie Greenwald são exemplos que a história do cinema nos dá de diretoras que, de alguma forma, colocaram a mulher em primeiro plano nesse gênero historicamente masculino. Mas nem por isso fizeram filmes feministas ou que escaparam aos estereótipos do gênero.

"Ataque dos Cães" e "First Cow" são filmes que revisitam um ambiente amplamente retratado pelo cinema, mas o fazem sob um novo olhar. Creio que é essa a lição que nos deixam Jane Campion e Kelly Reichardt com seus westerns: a presença na tela não é o único jeito de fazer um filme feminino. É o frescor de perspectiva a principal contribuição que as minorias históricas podem fazer para a produção audiovisual contemporânea.

(Numa infeliz coincidência, após enviar esta coluna recebi a notícia da morte de Lina Wertmüller, que cito no penúltimo parágrafo. A italiana, cuja alcunha mais famosa é "a primeira mulher a ter sido indicada para o Oscar", fez muito mais que isso em vida. O western que dirigiu, contudo –"A Pistoleira da Virginia" (1968), o único spaghetti western dirigido por uma mulher e com protagonismo feminino– não fez grande coisa pela revolução do gênero, com seu apelo soft porn e implicação questionável entre sexo e violência. Justiça seja feita, Lina foi contratada para assumir a direção aos 45 do segundo tempo com a demissão do diretor original e atuou inclusive sob um pseudônimo masculino. No mais, pretendo fazer a devida homenagem a Lina Wertmüller na próxima coluna.)

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