Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Descrição de chapéu Filmes Televisão

'O Golpista do Tinder' e 'Inventando Anna' buscam o olhar do bandido virtual

O mais interessante das histórias de enganação é justamente o labirinto de emoções que se encondem por trás da fraude

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Quando a tecnologia se mostrou capaz de inventar mundos virtuais, muito se apostou no potencial da VR, a realidade virtual, para criar realidades paralelas que nem sequer precisariam respeitar as leis da física. O desejo humano, contudo, tinha alvos bem mais terrenos como padrões de beleza e riqueza material.

Viu-se crescer a exploração do potencial tecnológico das redes sociais para inventar realidades alternativas: o Instagram com suas imagens e filtros embelezadores, o WhatsApp e a falsa sensação de proximidade de suas mensagens instantâneas e recados de voz, para citar alguns.

Esse fenômeno, combinado com o igualmente contemporâneo fascínio quase patológico por dinheiro e luxo, acabou resultando numa leva de produções audiovisuais sobre as fraudes virtuais.

cena de série
Katie Lowes, Julia Garner, Laverne Cox e Alexis Floyd em cena da série 'Inventando Anna', da Netflix - Aaron Epstein/Divulgação

"Fyre: Fiasco no Caribe", "Fyre: O Festival que Nunca Aconteceu" —que tratam do mesmo golpe—, "As Golpistas", "A Inventora: À Procura de Sangue no Vale do Silício", "Como Se Tornar uma Divindade na Flórida" –é longa a lista de obras que exploram o tema na forma documental, ficcional e seriada. O sucesso mais recente, "O Golpista do Tinder", esteve no topo dos mais vistos da semana passada —perdendo agora seu posto para uma espécie de variação sobre o mesmo tema: "Inventando Anna".

A série é a primeira de Shonda Rhimes dentro do acordo milionário de conteúdo que assinou com a Netflix e explora o caso de Anna Sorokin, a golpista que enganou meia Nova York e foi revelada ao público em 2018 por um artigo de Jessica Pressler na revista New York.

Rhimes, a cineasta negra cujo portfólio inclui títulos como "Grey’s Anatomy", "Scandal", "How to Get Away with Muder" e "Bridgerton", optou por narrar a história da forma como ocorreu na realidade: sob o ponto de vista da jornalista Vivian, que, grávida e em busca de redenção de sua carreira, vai montando o quebra-cabeça da trajetória de Anna por meio de conversas com ela e seus coadjuvantes.

O formato se torna cansativo: Vivian vai de conversas pouco inspiradas com Anna na prisão —numa conceituação de maquiagem e figurino que não convence— para diálogos "inspiradores" com três jornalistas mentores —atores muito bons desperdiçados em papéis intercambiáveis e ambientes que variam do escritório para a copa—, tudo intercalado com encenações das histórias contadas por Anna e pelos colaboradores da reportagem.

O artifício acaba sendo um tiro no pé, pois dá ao jornalismo um protagonismo que interessa muito menos do que uma figura "psicopática" —na falta de palavra melhor— como Anna. Ao menos para o público de uma série sobre um golpe inacreditável como o que ela aplicou. E vai, inclusive, na contramão do que se esperaria de uma série que pagou US$ 300 mil pelos direitos de adaptação e teve acesso a Sorokin e sua psiquê, no mínimo, interessantíssima.

Quando mergulha no mundo de Anna, a série aposta na sedução pela riqueza e poder: um desfile de figurinos de luxo regado a champanhe em espaços VIP e exclusivos, ao som de um hip-hop que cerca a personagem de uma aura de "bad bitch" —isto é, mulher durona, má.

E eu sou da mesma opinião de Adrian Horton quando escreve que o mais interessante dessas histórias de enganação é justamente o labirinto de emoções que se encondem por trás da fraude.

Nesse ponto, "O Golpista do Tinder" –um documentário sem ambição artística a respeito de Shimon Hayut, o israelense que enganou mulheres pelo mundo todo sob o nome de Simon Leviev– consegue ser muito mais tocante ao mostrar a dor das mulheres enganadas. Seus relatos revelam que há algo de muito mais doloroso do que o dinheiro que perderam para o meliante: a quebra de confiança, a desilusão amorosa de quem foi enganado.

"Inventando Anna" parece esquecer o aspecto humano e sucumbir à mesma sedução que acometeu as vítimas nova-iorquinas de Anna: por ideias hiperbólicas num mundo exclusivo de alto luxo. O que move pessoas como Anna Sorokin ou Shimon Hayut? Será que em algum nível eles acreditavam nas histórias que contavam? Ou eram movidos pela sensação inebriante de se safar de ter feito outros acreditarem em castelos de areia? Por que as vítimas se prendem de forma cega a uma confiança que é repetidamente quebrada? O que faz uma mulher pegar milhares de dólares em empréstimos e remeter o dinheiro para um homem que conheceu há três meses antes?

As duas últimas são perguntas especialmente legítimas quando as estatísticas revelam que nos Estados Unidos esse modelo de fraude "amorosa" já é maior que a bancária e causou, nos últimos cinco anos, danos de mais de US$ 1,3 bilhão às vítimas.

Qualquer pessoa viva no Brasil em 2022 sabe o nível que atingiram os golpes de WhatsApp, que, curiosamente ou não, começam frequentemente com uma palavra-chave que permite acessar quase imediatamente um lugar de profunda vulnerabilidade: "mãe".

Uma obra interessante sobre o tema é o livro de Jia Tolentino "Falso Espelho: Reflexões sobre a Autoilusão", lançado no Brasil pela editora Todavia e transformado em podcast pela BBC.

É inevitável também questionar um outro aspecto importante do retrato audiovisual dessas histórias sobre fraudes. Estaria a indústria de entretenimento ensinando que o crime compensa?

Anna Sorokin ganhou dinheiro com a venda dos direitos e adaptação e agora participará ativamente de uma série documental sobre seus próximos passos —condenada a 12 anos de prisão, Sorokin foi liberada por boa conduta depois de quatro anos. Shimon Hayut nunca foi condenado por suas ações e tem agora um agente em Los Angeles que negocia para ele um reality show no qual mulheres competiriam pelo seu amor.

Para além das questões éticas, fica uma dúvida artística: como adaptar histórias reais que carregam em si tanto potencial de ficção? Já dizia Mark Twain que "a verdade é mais estranha que a ficção, porque a ficção é obrigada a se restringir a possibilidades". "Inventando Anna" exibe em todo episódio sua premissa de criação: "essa história é totalmente verdadeira, exceto por todas as partes que são totalmente inventadas".

A solução dramatúrgica ideal talvez esteja escondida, no final das contas, mais numa realidade virtual do que nos filtros de luxo do Instagram. Incorporar o ponto de vista de criminoso e vítima talvez revele ao espectador um universo tão alienígena e surpreendente quanto um mundo de fantasia.

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