Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Helen Beltrame-Linné​

Tapa de Will Smith revela um ator negro preso aos moldes de Hollywood

Alguns acharam que era encenado, e o cinema tem sua parcela de culpa nisso ao defender a luta contra o mal

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Achei que quando chegasse o dia da coluna, o assunto do Oscar já teria se esvaziado. Contudo, o assunto continua em pauta, com a típica polarização do nosso tempo: os que condenam a atitude de Will Smith versus outros que o aplaudem. De minha parte, quero pedir licença para falar de cinema.

Confesso que de tudo que aconteceu até agora, o momento que mais me surpreendeu foi o burburinho de que o episódio todo teria sido encenado.

É sabido que a cerimônia do Oscar teve uma perda monumental de audiência em 2021, quando o público televisivo da cerimônia caiu pela metade. O objetivo declarado da cerimônia deste ano era aumentar o elemento "espetáculo" da coisa toda. Logo, concluíram alguns, o incidente seria uma performance roteirizada.

Especialistas foram consultados. Analisou-se os movimentos de Smith: era um soco, um tapa ou, como bem concluiu um colunista desta Folha, um tabefe? E o sorriso de Chris Rock logo após a agressão —não poderia se tratar da reação natural de um comediante treinado, aquilo era prova de que na verdade tudo tinha sido combinado.

O ator Will Smith dá um tapa no comediante Chris Rock durante a cerimônia do Oscar 2022 - Robyn Beck/AFP

E lá estava ela, a paranoia do mundo moderno, a era epidêmica das fake news. Todos os elementos de realidade desenrolados ao vivo na tela se tornaram imediatamente irrisórios diante de teorias da conspiração. É o mundo em que vivemos, de absoluta descrença na imagem —e a verdade é que o cinema tem sua parcela de culpa nisso.

Se a sétima arte nasce pelas mãos dos irmãos Lumière como forma representação da realidade —"A Saída da Indústria Lumière em Lyon", de 1895—, elementos de ficcionalização foram imediatamente incorporados ao formato pela cineasta Alice Guy-Blaché —"A Fada dos Repolhos", de 1896.

Alguns anos depois, o cinema como exploração de elementos de ilusão visual encontra em Georges Méliès seu maior expoente, inaugurando o gênero da ficção científica com seu "Viagem à Lua" (1902).

Se desde os primórdios vigorou no cinema o pacto de representação imagética da realidade, houve no século passado uma mudança nessa premissa. O ano de 1999 é marcante nesse sentido, tendo visto nascer filmes que passaram a questionar a própria realidade vivenciada pelo espectador na tela.

Obras como "O Sexto Sentido" e "Clube da Luta" inseriram um elemento de traição do pacto cinematográfico ao revelar em dado momento da trama que tudo aquilo em que o espectador havia acreditado até ali era mentira.

A praxe no cinema de ficção, via de regra, sempre foi a de que a ilusão criada pelo cineasta fosse compartilhada com o espectador. Um exemplo: "O Show de Truman" (1998), feito logo antes, revela rapidamente os bastidores do show em que vive o protagonista, nos informando que aquele personagem é iludido. A nova geração de filmes, contudo, quebra esse acordo, incutindo no espectador uma desconfiança de tudo que vê, pois o iludido pode ser ele.

A trilogia iniciada com "Matrix" (1999) acentuou ainda mais essa sensação, que juntamente com evoluções tecnológicas de manipulação da imagem, incutiram em nós uma desconfiança generalizada da própria realidade, não só daquela representada no cinema. Em última instância, uma descrença em nossos sentidos, que sempre foram responsáveis por nos informar sobre a realidade e, assim, prover capacidade de se defender e sobreviver no mundo.

Essa penetração da experiência cinematográfica na vida real é um fenômeno que também geriu, ainda que de uma outra forma, as vivências de Chris Rock e Will Smith naquele momento que era, em última instância, uma experiência de realidade e não de representação.

Para começar, Smith, ao subir ao palco, teria dado em Rock um tabefe cênico, valendo-se de todo o treinamento profissional conquistado em anos de atuação em filmes de ação. Isso justificaria a aparência de encenação apontada por especialistas, assim como a reação sorridente da vítima: a agressão não teria doído tanto no rosto de Rock quanto está doendo na consciência dos envolvidos.

O audiovisual também abasteceu a performance de palco de Rock, que protagonizou entre 2005 e 2008 a longuíssima série "Todo Mundo Odeia o Chris", que explorou em 88 episódios as desventuras do ator na sua adolescência. O título é sugestivo sobre a persona que Rock parece ter adotado em sua linha de comédia e pode explicar o seu sorriso depois do tapa: o Chris Rock famoso capaz de rir do menino que cresceu se sentindo odiado.

A performance de Will Smith foi ainda mais sintomática. Ao levantar de sua cadeira como grande cavalheiro em defesa de sua donzela, o ator estava muito imbuído do seu próprio personagem em "King Richard: Criando Campeãs", pelo qual viria a ganhar o Oscar.

O filme, aliás, tem sido criticado justamente pela mesma acusação que agora se faz a Smith em relação à verbalmente agredida Jada Pinkett-Smith: ignorar as personagens femininas (as irmãs Venus e Serena Williams), para entregar ao herói masculino um protagonismo que não é dele.

Claro que a posteriori pode-se alegar que Smith poderia ter usado aquele momento para declarar no palco: "Chris, não gostei da piada que você fez com a minha esposa, que está careca por conta de uma doença autoimune. Gostaria que você pedisse desculpa." Seria certamente uma forma mais educativa de lidar com o ocorrido, mas é isso que o cinema ensinou ao ator americano?

Longe de mim ser especialista em sua carreira, mas puxando na memória só consigo lembrar nos últimos anos de papéis messiânicos, em que ele desempenha o arquétipo clássico do herói —um modelo, aliás, que por sua própria gênese é típico de um homem branco. Explico.

A jornada do herói que serve de base para a grande produção hollywoodiana (definida por Joseph Campbell em "O Herói de Mil Faces", de 1949, e atualizada por Christopher Vogler em "A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Escritores", de 1992) pode ser resumida assim:

Um herói abandona o mundo comum, tranquilo, para se aventurar por um lugar desconhecido de maravilhas sobrenaturais. Lá ele lutará contra forças fantásticas e conquistará uma vitória decisiva, voltando para o seu mundo com o poder de conceder bênção aos seus semelhantes.

Ora, não estou sozinha ao apontar que essa estrutura não parece servir bem a homens negros, cujo mundo "comum" nada tem de tranquilo pois envolve uma luta constante contra o racismo estrutural. Mas se é pelo papel do herói branco que Hollywood consagra atores negros —e penso aqui em Eddie Murphy, Samuel L. Jackson, Denzel Washington, para citar alguns—, o que se pode exigir de seu imaginário?

Denzel Washington foi, inclusive, mencionado no discurso de agradecimento de Smith, que fez referência a um conselho do colega sobre a luta contra o mal. Vejo dois atores que enxergam a vida segundo moldes clássicos de Hollywood, e penso em "Pantera Negra" (2018).

O filme que agitou plateias negras pelos cinemas dos Estados Unidos pode ter iniciado uma revolução necessária na representação do herói negro na tela. No longa, o personagem interpretado por Chadwick Boseman —que, ainda que tenha morrido precocemente , não deixa de representar uma nova geração possível de atores negros— enfrenta um antagonista que é, no final das contas, o outro lado de uma mesma moeda.

Talvez seja a hora de o cinema proporcionar a Will Smith uma história em que o inimigo não seja o mal, mas um outro lado dele mesmo. E a Chris Rock um mundo onde se possa existir de forma mais rica do que o antagonismo entre amor e ódio.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.