Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

"Licorice Pizza" desaponta apreciador do trabalho de Paul Thomas Anderson

Cooper Hoffman deixa a desejar no papel de Gary e filme parece uma palestra muito chata da qual não pode levantar

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Confesso que quando ouvi falar de "Licorice Pizza" fiquei imediatamente animada com a antecipação de ver o filme, expectativa essa que foi alimentada por comentários nas redes sociais, onde a palavra mais usada para se referir ao longa era "delícia".

Fui guardando a obra de Paul Thomas Anderson como quem reserva seu chocolate favorito numa gaveta, sabendo que vai ter aquele prazer conhecido esperando quando precisar (essa metáfora talvez fale mais do que eu gostaria sobre a minha personalidade).

Sou fã assumida do cinema de Anderson (ou PTA, como é mais conhecido). Acho "Trama Fantasma" uma obra-prima. "Sangue Negro" não fica muito abaixo e "Embriagado de Amor" é literalmente o tal do chocolate que acesso quando preciso. Gosto muito de "O Mestre", "Magnólia", "Boogie Nights". Lendo todos os títulos num mesmo parágrafo fica evidente a potência da filmografia do roteirista e diretor norte-americano.

pôster de filme
Cartaz do filme 'Licorice Pizza', dirigido por Paul Thomas Anderson - Divulgação

Licorice, para quem não sabe, é o nome inglês do alcaçuz, uma planta da qual se extrai um xarope preto usado para fazer doces. Quando li o título do filme, achei que fosse uma referência ao disco de vinil. Combinado com uma foto de divulgação em que os protagonistas correm com sorrisos divertidos no rosto, imaginei uma coisa meio "Quase Famosos" com nouvelle vague: uma aventura amorosa de juventude permeada por discos.

Claro que o Paul Thomas Anderson não tem nada a ver com isso, a única culpada pela minha fantasia sou eu mesma. Mas o fato é que comecei a assistir ao longa e depois de dez minutos estava agoniada. "Licorice Pizza" tem 133 minutos de duração. Eu sei porque assisti o filme inteiro com meio olho no marcador, numa contagem regressiva digna de quem acompanha uma palestra muito chata da qual não pode levantar. Saí do filme exausta.

A trama gira em torno de Gary e Alana, um clássico "garoto encontra garota", e meu problema começa logo de saída: não compro a escolha de Cooper Hoffman para o papel de Gary. Hoffman tem algum charme, talvez herdado do pai, Philip Seymour Hoffman, mas falta nele a ironia típica dos anti-heróis de Anderson, aquele lado negro que sempre lhes dá um brilho perturbador.

O personagem de Gary perde carisma e empatia, e se torna um simples praticante do lema "finja até ter sucesso" ("fake it until you make it", em inglês), um aproveitador no pior sentido da palavra. No seu mundo, tudo é um negócio em potencial: os filmes, os colchões de água, a política e até o amor.

Fora isso, Hoffman (filho) mal segura as pontas do papel. Numa entrevista de PTA, ouvi uma anedota reveladora: durante a filmagem eles apelidaram o garoto, então com 17 anos, de "Cooper das três da tarde". Era o horário em que Hoffman, sempre apagado até aquele momento, de repente se enchia de energia e tinha seu melhor desempenho. Talvez falte a "Licorice Pizza" mais cenas filmadas a partir desse horário.

Para complicar a situação, o jovem ator contracena com Alana Haim, que, apesar de estreante como ele, tem 30 anos, dez deles vividos na estrada com sua bem-sucedida banda de música. Além do carisma de Haim na tela, sua personagem Alana Kane é a caçula de uma família judia que vive com os pais e as irmãs mais velhas, com todas as idiossincrasias que esse ambiente pode gerar —e que não sabe o que fazer com a vida, que lhe parece estar escorrendo pelos dedos. Alana precisa um pouco daquilo que encontra no jovem Gary: seu ímpeto juvenil e espírito empreendedor.

Pela descrição da personagem, seria natural dar maior protagonismo a Alana. E nas entrevistas com a equipe vigora uma narrativa de que a Alana real está na gênese da personagem e Anderson teria apostado muito nela para construir a Alana fictícia.

Pensei imediatamente em "A Pior Pessoa do Mundo", cujo diretor Joachim Trier faz discurso parecido sobre sua colaboração com a atriz Renate Reinsve. No caso do norueguês, a narrativa cola: o roteiro e a imagem na tela confirmam as claras marcas de Reinsve no projeto.

Em "Licorice", a impressão que se tem é de que Anderson não bebeu na fonte de juventude de Haim: foi ela que comprou a personagem idealizada pelo diretor, uma garota de 20 e poucos anos que viveu nas Los Angeles dos anos 1970. E que funciona como polo atrator para o verdadeiro motor da história, o garoto Gary –na direção de quem Anderson inegavelmente orbita.

Confesso que nesse momento lembrei de extratos da entrevista de Fiona Apple na qual revela histórias pouco lisonjeiras de seu ex-companheiro PTA, dentre as quais uma imagem para sempre eternizada na minha mente de Anderson e Tarantino em estado narcísico e autorreferente depois de consumirem cocaína.

Mas voltando ao filme, "Licorice Pizza" tem um outro problema que vai além das deficiências das personagens principais. A participação especial de estrelas como Bradley Cooper e Sean Penn em papéis secundários acaba se desenrolando em sequências muito mais longas do que seus papéis justificariam.

São intervenções que aumentam uma sensação que não abandona durante o filme inteiro: estamos diante de um compilado de cenas desconexas, sem continuidade dramatúrgica. Isso talvez explique a sensação de cansaço: esse é um filme inquieto que vai pulando entre cenas puramente de "vibes" e sensações, fragmentos que vão se tornando cada vez mais difíceis de conectar ao senso geral da narrativa.

Volto à palavra delícia. Talvez para quem não espere que esses elementos formem qualquer tipo de progressão dramática, a experiência de ver "Licorice Pizza" seja mesmo deliciosa. Além dos atores estrelados, o filme é todo rodado em 35 mm e animado por uma trilha sonora que é uma verdadeira sequência de superhits –The Doors, Paul McCartney, Nina Simone e Chuck Berry, para citar alguns.

Para mim, contudo, ficou uma sensação de uma direção oportunista, que chegou ao ápice quando toca "Life on Mars", um dos maiores clássicos de David Bowie, durante uma sequência completamente gratuita sem qualquer diálogo profundo com a canção. PTA sempre foi um diretor nostálgico, mas neste último trabalho parece que os seus protagonistas têm tão pouco a dizer que passam o tempo todo correndo de um lado para o outro.

"Licorice Pizza" talvez seja como os colchões de água que Gary vende num certo momento da trama: um produto da moda, que aposta no poder sedutor da novidade para enganar desavisados. Mas não demora muito para os compradores perceberem que não há pior ideia do que dormir numa cama de água. No fundo, tenho a esperança de que, passada essa aura de "cool", PTA seja ele mesmo capaz de reconhecer essa ironia.

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