Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​
Descrição de chapéu Cinema machismo

O que 'King Richard' e 'As Agentes 355' ensinam sobre protagonismo feminino

Enquanto o primeiro é um compilado de lições de moral datado, o segundo é diversão garantida com mulheres afiadíssimas

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Numa viagem recente me deparei com "King Richard: Criando Campeãs" na seleção de filmes e pensei que a diminuta tela do avião fosse ideal para assistir o longa, do qual esperava muito pouco mesmo antes de ele ser eternizado pelo episódio protagonizado por Will Smith no Oscar.

De cara, o filme tinha despertado minha antipatia pela sua escolha de ponto de vista: faz sentido que uma ficção que trata da vida de duas das maiores jogadores de tênis da história do esporte opte por focar a figura do pai delas? Juntou-se a isso comentários que li e ouvi de diferentes fontes e ficou fácil descartar a obrigação de assisti-lo.

Will Smith (no centro) em cena do filme 'King Richard: Criando Campeãs', pelo qual ganhou o Oscar de melhor ator - Divulgação

Ali na poltrona apertada do avião, contudo, resolvi encarar o filme, até por curiosidade de ver com meus próprios olhos do que se tratava. Afinal, Will Smith não está sozinho: ele é parte de uma geração que nem sequer percebe que o protagonismo dessa história não é dele. Então passei por cima do fato de "King Richard" ser feito antes de "Princesas Venus e Serena", e dei play.

Bom, só posso dizer que o que se desenrolou diante dos meus olhos foi muito pior do que eu poderia imaginar.

Não é que o foco do filme simplesmente recaia sobre o pai: Serena e Venus, juntamente com suas três irmãs (por parte de mãe, algo que descobri na Wikipédia), são desde o início tratadas como um coro, isto é, cinco meninas negras tratadas de forma intercambiável, sem voz individual. Fiz questão de anotar: até os 20 minutos de filme, eu ainda não tinha a menor ideia de quem eram aquelas meninas, e muito menos qualquer indicação da personalidade ou da diferenciação entre Venus e Serena.

Me lembrei do comentário infeliz de Jane Campion ao ganhar o prêmio do Critics Choice Awards em março, ao declarar para as irmãs Williams que elas eram maravilhosas, mas não competiam com os homens como ela, Jane, tinha que fazer. "King Richard" deixa mais do que evidente que as tenistas não só lutaram contra homens, se o filme for minimamente fiel à história de como cresceram, como continuam lutando, o que fica evidente ao não protagonizarem nem mesmo o filme sobre suas vidas.

Eu poderia criticar o filme para muito além da escolha ideologicamente infeliz de protagonismo: o quão insuportável é o personagem Richard, com seus discursos e lições de moral constantes, alguém que parece incrivelmente apaixonado pelo som da própria voz; a fragilidade do ponto de virada em que Richard é salvo por uma manobra do destino; as escolhas equivocadas de roteiro e direção.

Poderia mencionar o fato de que se trata de um filme absolutamente datado e desconectado do seu tempo, que se permite fazer uma cena em que seis mulheres negras são postas numa sala para ver "Cinderela" seguida de uma palestra educativa, por assim dizer, do homem da casa. Olha, eu não saberia nem por onde começar.

Ainda atordoada, embarquei num segundo filme, que escolhi porque meus ouvidos clamavam por ouvir vozes femininas depois de duas horas de palestra do Will Smith. O cartaz de "As Agentes 355" prometia muitas: Jessica Chastain, Penélope Cruz, Lupita Nyong’o, Diane Kruger, Fan Bingbing. E o que se desenrolou diante dos meus olhos foi algo merecedor de uma tela (e de fones) muito melhores.

Considero-me minimamente informada sobre a indústria e confesso que não tinha nem ouvido falar desse filme. Escrito pela dramaturga Theresa Rebeck ("Mulher Gato", "Intriga") juntamente com o diretor Simon Kinberg ("X-Men", "Sr. e Sra. Smith", "Sherlock Holmes"), "As Agentes 355" é um típico blockbuster de ação à la James Bond ou "Missão Impossível", que pela estrutura se aproxima de clássicos como "Onze Homens e um Segredo". Só que aqui são cinco mulheres e uma missão.

A sinopse é clássica: o mundo está sob ameaça de uma organização global de mercenários e espiãs de diferentes agências do mundo —CIA, MI6, além dos serviços secretos alemão, japonês e espanhol— se unem para vencer o mal.

O interessante aqui é que os autores conseguiram inserir o conceito de sororidade feminina num filme de ação. Não se trata de um grupo de amigas ou de mulheres dóceis unidas por um inimigo comum: temos cinco indivíduos do sexo feminino com personalidades distintas, cada uma enfrentando seus problemas pessoais específicos e com dilemas próprios para embarcar naquela jornada.

Como roteirista, me impressionou a qualidade dos diálogos e a competência em manter um choque constante entre as diferentes personalidades das cinco mulheres. Eu poderia criticar a falta de abordagem clara sobre o título: "355" era a identidade de uma enigmática espiã que desempenhou um papel central na revolução americana liderada por George Washington. Mas foi poderoso assistir ao formato clássico de filme de espião aplicado ao gênero feminino de forma tão vibrante.

Chegando em terra firme, pesquiso as críticas sobre o filme e noto que as avaliações são péssimas: roteiro superficial, centrado em estereótipos, um filme que perde a oportunidade de discutir a instituição do casamento. Na hora penso nos equivalentes do gênero protagonizado por homens e não me lembro de ter jamais lido esse tipo de exigência por parte da crítica ou dos espectadores.

Quem escolhe ver um filme de ação, não o faz para ver uma discussão sobre a instituição do casamento. Mas a partir do momento em que as protagonistas são mulheres, isso passa a ser pauta obrigatória. O velho dois pesos, duas medidas, numa diferença de avaliação que revela um preconceito evidente. Seria porque se exige mais de um filme de mulheres? (E a pergunta é a mesma de sempre: por quê?) Ou seria o real motivo uma recusa em aceitar que mulheres possam tomar o lugar dos mocinhos que lutam, sangram na tela e salvam o mundo?

Em vez de me afundar no desânimo de constatar o quanto ainda precisamos evoluir como sociedade, vim aqui escrever esta coluna para quem sabe estimular mais pessoas —homens ou mulheres— assistam a esse produto de entretenimento da melhor qualidade. Diferentemente da chatice de "King Richard", "As Agentes 355" é diversão garantida, com mulheres afiadíssimas que não deixam nada a desejar como heroínas. Só faltou adicionar as irmãs Williams ao time. Quem sabe quando vier o volume dois.

King Richard: Criando Campeãs

  • Onde Disponível no HBO Max, Net Now e Oi Play e p/ aluguel e compra no Google Play, Microsoft e Apple TV+
  • Classificação 12 anos
  • Elenco Will Smith, Aunjanue Ellis, Saniyya Sidney e Demi Singleton
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Reinaldo Marcus Green

As Agentes 355

  • Onde Disponível Amazon Prime Video e p/ aluguel e compra no Google Play e Apple TV+
  • Classificação 16 anos
  • Elenco Jessica Chastain, Penelope Cruz, Lupita Nyong’o, Diane Kruger, Fan Bingbing
  • Produção EUA, 2021
  • Direção Simon Kinberg

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