Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Descrição de chapéu Cinema Televisão

Após juíza negar aborto a criança, veja filmes para compreender o tema

Além do caso macabro, longas como '4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias' trazem histórias igualmente assustadoras

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Tem dias em que o inimaginável se impõe à nossa mente. A notícia da garota de 11 anos impedida de realizar o aborto que a lei garante após estupro é o exemplo mais recente.

A jornada toda da criança é inimaginável: aos dez anos, engravida daquele que, provavelmente, não era o primeiro estupro de sua vida. É o que se pode supor num país em que quatro meninas são estupradas por hora e uma média de 25 mil garotas de entre dez e 14 anos se tornam mães anualmente. E também pelo que aprendemos no caso célebre anterior, em que a menina grávida de 11 anos havia sido molestada dos seis aos nove anos por um familiar.

Infelizmente, uma parte dessa história pode ser vista no vídeo da audiência obtido pela imprensa. É um programa que não recomendo por conter requintes de crueldade na submissão da criança, então com dez anos e grávida de 22 semanas, assim como sua mãe, a um novo ciclo de violência, dessa vez pela juíza, promotora e outros auxiliares de Justiça.

Juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina.
Juíza Joana Ribeiro Zimmer, de Santa Catarina, que ouviu a menina de 11 anos grávida do estuprador - Solon Soares/Agência ALESC

O filme macabro da história inteira ainda não foi feito, mas existem outros igualmente assustadores sobre o tema do aborto. "4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias", de 2007, de Cristian Mungiu, é um deles, premiado com a Palma de Ouro do Festival de Cannes.

Filmado em tempo real, durante um dia, ele retrata os percalços de duas amigas para conseguir um aborto ilegal para uma delas na Romênia comunista. Pelo avançado da gravidez, o médico que irá realizar o procedimento corre o risco de ser acusado de assassinato, o que o faz crer que tem o direito de exigir das duas garotas que façam sexo com ele. O homem não vê uma paciente, mas sim um corpo feminino do qual pode desfrutar.

Laura Vasiliu e Vlad Ivanov em cena de '4 Meses, 3 Semanas e 2 Dias', de Cristian Mungiu - Divulgação

A atitude lembra a da juíza do caso de Santa Catarina, que pede à menina de 11 anos que "aguente mais um pouquinho" e tenha o filho para oferecer à adoção. A magistrada não vê a menina real que está diante dela, apenas o bebê (até aquele momento, imaginário) que ela leva no ventre, o qual poderia "fazer uma família muito feliz".

Uma família, muito provavelmente, rica e branca —e esse ponto da audiência já renderia um artigo inteiro sobre a invisibilidade daquelas mulheres negras e pobres que buscam, sem sucesso, auxílio do Judiciário. "Uma felicidade às custas das dores da minha família", rebateu a mãe da vítima, aos prantos.

Mas voltando ao aborto. Via crúcis similar à das personagens romenas é a da francesa Annie Ernaux descrita em seu romance "O Acontecimento", lançado no Brasil pela Fósforo e agora adaptado num longa-metragem homônimo dirigido por Audrey Diwan. Premiado com o Leão de Ouro no Festival de Veneza, "O Acontecimento" está sendo exibido no festival Varilux —que vai até 6 de julho— e entra no circuito comercial em seguida.

Livro e filme retratam o suplício de uma estudante universitária francesa que busca um aborto nos anos 1960, antes da legalização do procedimento na França —o que ocorreu em 1975. O foco da narrativa é o desamparo, medo e desespero da jovem que vê seu futuro acadêmico ameaçado por uma gravidez indesejada de um namorado que logo tira o seu corpo de campo.

Como conta a diretora do longa em entrevista à Folha, abortar no contexto de ilegalidade requer uma "vontade feroz", além de lançar as mulheres à clandestinidade e uma ocupação mental e física que retira sua vida de qualquer possível normalidade.

Por isso mesmo, até quando é legal, o aborto é complicado. O debate recente nos Estados Unidos sobre a possível reversão do caso Roe versus Wade —que reverteria o direito constitucional ao aborto, delegando a decisão à legislação de cada estado— é um sintoma disso. Existe uma cultura que se sobrepõe à lei e frequentemente submete a mulher grávida que quer abortar a violências institucionais.

"Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre", da talentosíssima Eliza Hittman, disponível para aluguel em diversas plataformas, é uma narrativa fundamental nesse contexto. Nele, uma garota grávida de 17 anos procura ajuda numa clínica, onde recebe panfletos sobre adoção e assiste a um vídeo antiaborto. Descobre, em seguida, que o aborto legal no seu estado precisa de autorização dos pais. Como fica claro na tragédia brasileira, nem quando é autorizado, um aborto é fácil ou rápido.

cena de filme
Cena do filme 'Nunca, Raramente, Às Vezes, Sempre', de Eliza Hittman - Divulgação

Assim como na narrativa de Ernaux, o périplo da protagonista April é longo e passa inevitavelmente por uma tentativa frustrada e violenta de provocar um autoaborto. O mais cruel é que a morosidade de ação é especialmente delicada no contexto de uma gravidez, em que cada semana aumenta o feto e o problema para a mulher que não quer gerar aquela nova vida.

Mesmo diante de tudo isso, quando um candidato à Presidência diz que o aborto é um tema essencial de saúde pública, todos entram em polvorosa. Mas é o mínimo que se espera de uma questão que afeta metade da população mundial: que seja objeto de debate público seguido de solução institucional que não discrimine em função da renda ou cor de pele das envolvidas.

A reação, contudo, não deveria espantar: como já bem analisado previamente nesta Folha, as novelas brasileiras, carro-chefe da dramaturgia popular nacional, dão ao aborto um tratamento bastante questionável, não contribuindo em nada para um debate saudável sobre o assunto.

Outro dia li uma proposta nas redes: fazer vasectomia reversível em todos os homens. Quando provarem que têm condição de assumir a responsabilidade pelos seus atos, ficam liberados para engravidar mulheres. Parece complexo? Assistam aos filmes. Complicado é fazer um aborto.

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