Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Veredito Depp revela necessidade de histórias contadas por mulheres

É urgente que mais vozes femininas ganhem espaço e possam contribuir para uma visão de mundo mais ampla

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Imediatamente depois do anúncio do veredito "Depp vs. Heard" chegaram ao Instagram mensagens de desconhecidos rejubilando a minha derrota. Um dia antes, meu texto sobre a disputa havia sido tomado como uma agressão pessoal a certos defensores (e muitas defensoras) de Depp, que reagiram violentamente com xingamentos e agressões variadas, inclusive indigestas manifestações a favor do atual presidente. Aliás, Bolsonaro foi um dos que comemoraram a derrota de Heard nas redes sociais.

Mas logo ficou claro que os efeitos da vitória de Depp em primeira instância seriam muito maiores do que a minha perseguição nas redes sociais. No dia seguinte ao anúncio, o ex-diretor Marcius Melhem, acusado de assédio moral e sexual por integrantes de sua equipe de comédia na Globo, postou no Instagram um vídeo de um evento no qual sua principal acusadora, a atriz Dani Calabresa, cantava num videokê com outras comediantes da emissora.

o ator johnny depp acena com a mão e sorri
O ator Johnny Depp durante audiência em Fairfax, na Virgínia, nos Estados Unidos - Jim Watson/AFP

A legenda dizia: "#tbt dessa festa na minha casa com todo mundo se divertindo no videokê um mês depois da festa 100 do Zorra em 09/12/17". O evento de 2017 mencionado por Melhem teria sido o palco para o incidente de assédio mais violento alegado por Calabresa.

Para que não haja dúvidas: eu não tenho a menor ideia se as acusações contra Melhem são verdadeiras e não pretendo tecer argumentos contra ou a favor. O que me interessa é analisar um fenômeno que pude observar na esfera pública.

A postagem de Melhem, feita de carona na vitória de Depp, me pareceu sugerir que Calabresa não poderia ter sido vítima de uma agressão se um mês depois esteve na casa do alegado agressor dançando "Segura o Tchan".

No mesmo dia, ao abrir a Folha, vi na capa da Ilustrada uma foto imensa de Johnny Depp com o seguinte destaque textual: "a presença de Johnny Depp é infinitamente mais encantadora que a de Amber Heard. Ele é gentil, ela é arrogante. Ele é divertido, ela é impaciente. Ele é famoso, ela é desconhecida. Os jurados se sentiram atraídos, mais confortáveis com a voz dele".

Se fosse mais gentil e menos impaciente, Heard teria ganho o processo? Se Dani Calabresa não tivesse participado de uma festa na casa do seu suposto agressor, suas acusações seriam mais plausíveis? É esse o futuro das mulheres que alegam abuso: fazer uma performance que coincida com a ideia de comportamento da vítima que existe no imaginário coletivo?

Comecei a pensar em qual seria a origem desse modelo e imediatamente me vieram à mente dois seriados muito interessantes que contradizem essa expectativa: "I May Destroy You" (2020, disponível na HBO) e "Fleabag" (2016, disponível na Amazon Prime), sobre os quais infelizmente terei que dar spoilers para ilustrar esta reflexão.

O primeiro, escrito e protagonizado por Michaela Coel, retrata uma mulher que foi dopada e violentada sexualmente no banheiro de um bar. Arabella é uma personagem moderna, despachada e sexualmente livre, que não se lembra de todos os elementos do incidente e falha em responder a todos os questionamentos que lhe são feitos sobre o ocorrido. O principal deles é que não se lembra do rosto do agressor, mas se lembra de ter bebido muito naquela noite.

Dada essa premissa, o seriado acompanha essa mulher em suas tentativas, muitas vezes desastradas, de lidar com o trauma. O que faz Arabella: se tranca em casa e chora? Não, ela segue sua vida, inicialmente numa verdadeira negação do impacto do crime e se colocando inclusive em novas situações de risco, até transando com um sujeito que mal conhece dias depois do estupro.

Tudo que acontece com essa personagem, suas atitudes inesperadas, incongruentes e atrapalhadas, vão a auxiliando a acessar a vivência do crime. Até que um dia está pronta para pegar embaixo da cama a sacola com as roupas que estava usando no fatídico dia, numa imagem que é bastante metafórica: ela precisou patinar muito na superfície para conseguir chegar ao fundo.

"Fleabag", criado e estrelado por Phoebe Waller-Bridge, também aborda um trauma feminino que passa pelo aspecto sexual: a protagonista transa com o namorado da sua melhor amiga e sócia, que acaba se matando ao descobrir a traição.

O que o senso comum determina que se espere de uma mulher que perde a melhor amiga porque sucumbiu ao seu desejo sexual? Abstinência, como forma de penitência e até de elaboração do que significariam impulsos sexuais que lhe parecem tão irresistíveis? Nada mais distante do que acontece na tela.

Ao longo dos episódios, o que vemos é uma mulher em luto pela morte da amiga e que age praticamente sem discernimento em resposta ao seu desejo sexual. O comportamento mostrado em "Fleabag" tem algo de destrutivo e doentio, mas só compreenderemos até que ponto o seu desejo é fonte de culpa quando são reveladas, no final da temporada, as circunstâncias da morte da amiga.

Penso que essas duas séries me vêm à mente porque questionam justamente os preconceitos revelados no Fla-Flu do julgamento Depp vs. Heard. Trata-se de dois exemplos de conteúdo audiovisual que tangenciam o tema do trauma sob o ponto de vista feminino, dando uma perspectiva mais ampla sobre como pode ser o comportamento de uma mulher assediada.

Deixo aprofundamentos para os especialistas, mas quero lembrar que Freud já apontava para diferentes formas de elaboração da experiência traumática, que vão de paralisia e silêncio até quadros de dissociação ou mesmo de histeria, em que a ideia de conflito psíquico fica até mais clara.

O imaginário de uma sociedade, que orienta suas predisposições e arquétipos mentais, é construído por uma complexa rede de elementos: sociais, políticos, legais, históricos. E também artísticos. Há séculos, as artes –e não falo aqui somente de cinema– vêm repetindo e consolidando o ponto de vista masculino, que orienta nossas expectativas e leituras do mundo.

É urgente que mais vozes femininas ganhem espaço e possam contribuir para uma visão de mundo mais ampla, que reconheça e incorpore posturas que colidem frontalmente com o que o senso comum indica que deveria se esperar naquelas situações.

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