Helen Beltrame-Linné​

Roteirista e consultora de dramaturgia, foi diretora da Fundação Bergman Center, na Suécia, e editora-adjunta da Ilustríssima

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Helen Beltrame-Linné​

Presença negra na arte não é só dívida histórica, mas criação de lugar de escuta

Obras no cinema e na literatura dão aos brancos a possibilidade de ver a complexidade de uma vivência desconhecida

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Semana passada, passando o olho pelo apanhado de colunas do dia, me chamou atenção o título "Por que manter cotas na pós-graduação?". Infere-se do texto que Helio Schwartsman entende as cotas como um instrumento de correção de uma certa defasagem de "desempenho" (para usar o termo do articulista) das minorias, dando-lhes acesso a algo que apenas pelo seu mérito não teriam.

Foi alentador ler, naquele mesmo rol, a coluna de Marcelo Leite que tratou do interessante entendimento da descriminalização do uso de drogas como uma forma de combate à discriminação racial.

Alfred Enoch e Taís Araujo em cena do filme 'Medida Provisória' - Mariana Vianna/Divulgação

Mas voltando às cotas, achei curioso perceber o quanto soou obsoleto o conceito de que esse mecanismo serviria apenas à compensação de uma dívida histórica. Passadas décadas da instituição dessa política, sinto que o seu aspecto mais significativo é mudar a fórceps o cenário à nossa volta.

Frequentei a Faculdade de Direito do Largo São Francisco por quase dez anos. Não tive um professor negro. Na minha turma de quase 450 alunos, tive dois colegas de pele escura. Nos escritórios em que trabalhei, não havia nenhum advogado ou estagiário de origem indígena, afrodescendente ou de baixa renda.

Uma semana atrás, durante o evento pela democracia que reuniu uma pequena multidão nas arcadas da minha faculdade, pude testemunhar, na transmissão ao vivo da cerimônia, algo que seria digno de ficção científica 20 anos atrás —quem conduzia o evento era uma mulher negra que, ao terminar sua fala, passou o microfone para uma outra mulher de pele semelhante.

A mesma coisa aconteceu no ambiente que frequento agora, o audiovisual. Tanto na frente quanto atrás das câmeras.

No feed das redes sociais, no tapete vermelho do Festival de Gramado, nas salas de roteiro: a diversidade tem se tornado a cada dia menos extraordinária.

Sinto que essas são mudanças que ultrapassam de longe um pretenso "nivelamento" de defasagens técnicas. Trata-se de um mecanismo que impõe uma realidade na qual passa a ser natural que haja negros em toda a parte. Até que deixemos de notar a cor da sua pele. Ou melhor, até que possamos passar a apreciá-la pelo que traz de complexidade cultural e histórica. O verdadeiro exercício de desracialização será a normalidade de ter negros em todas as esferas de poder.

Nas telas, parece que começamos a percorrer este caminho. É verdade que ainda existem filmes que exploram a negritude como um diferencial que determina a trama, geralmente por caminhos fantásticos ou utópicos —"Medida Provisória", de Lázaro Ramos, lançado neste ano, e "Corra", de Jordan Peele, de 2017, são exemplos. Mas já existe uma outra linhagem de obras que não trabalham a oposição entre negros e brancos: eles embutem a premissa da negritude na narrativa, numa espécie de valorização absoluta do "ser negro" —"Pantera Negra", de Ryan Coogler, de 2018, "Black Is King", de Beyoncé, de 2020, e o esperado "The Woman King", que sai em setembro, são alguns.

Há, contudo, uma terceira via que até hoje só identifiquei na literatura. São livros que mergulham na experiência subjetiva de ser negro numa sociedade historicamente racista e desigual. Tomando emprestado o belíssimo título do romance de Jeferson Tenório: obras que mostram o avesso da pele.

O interessante desse ponto de vista é nós, brancos, termos a possibilidade de enxergar a complexidade da vivência desse outro que nos é desconhecido. E quem sabe entender que não se trata de reservar uma vaga para alguém menos qualificado, mas de reconfigurar as dinâmicas sociais, políticas e econômicas do nosso entorno.

Uma obra recém-lançada que vai na jugular desta questão é "No Canto dos Ladinos", de Quito Ribeiro, publicada pela Todavia, que parte das vivências de duas irmãs com diferentes níveis de melanina na pele para traçar um panorama sobre a vivência da negritude em suas variada nuances.

É a aproximação de uma espécie de classe média negra que já havia sido ensaiada por Paulo Scott em seu "Marrom e Amarelo", publicado pela Alfaguara, mas que nas mãos de Ribeiro —ele sim negro — se amplia e completa.

Ainda vejo muitos brancos reclamando de não poder dar opinião sobre tudo, de ter perdido o tal do lugar de fala. Proponho que vejamos a coisa de outra perspectiva: fomos agraciados com o lugar da escuta. E, como sempre digo para a minha filha, não é à toa que temos dois olhos, dois ouvidos e só uma boca.

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