O declínio das ideias socialistas por estas bandas tem promovido uma cerimoniosa procissão de socialistas das vertentes menos puristas para se auto-proclamarem "liberais", como ilustram artigos recorrentes nesta Folha. Constrangidos por décadas de desastre, restou-lhes abandonar, por sobrevivência, o rótulo original e adotar roupagem moderna de aluguel. A escolha foi o liberalismo em ascensão.
Como dizia Schumpeter, é "um supremo elogio, ainda que não proposital, que os inimigos do sistema de livre-iniciativa decidam confiscar o termo liberal para significar o contrário do que representa". Ao espremer o pseudo-liberal –que chamarei de Fabiano–, sai um conteúdo avermelhado indistinguível da social-democracia.
"Liberalismo" para o Fabiano é algo como vestir fantasia de índio em um Carnaval financiado com dinheiro público. E sempre com direito a apito do "papai-Estado" que, espera, magicamente vai prover as coisas essenciais (segundo o Fabiano, o Estado "encontra" ou "inventa" dinheiro) e servirá de instrumento para redesenhar a sociedade em prol de seus "nobres" objetivos.
Roberto Campos dizia que todo cidadão com formação marxista parece um francês falando tupi-guarani quando se torna liberal. "Anauê, je suis liberô, ce billet est vrai!". E o que é o liberalismo? Segundo Ludwig von Mises (Liberalismo, LVM Editora), os pensadores do século 18 e início do século 19 formularam um programa que serviu de guia para políticas públicas na Inglaterra e nos Estados Unidos, e depois no resto do mundo.
Ainda que não tenha sido completamente implementado, a breve supremacia das ideias liberais mudou a face do planeta. É baseado na ideia de que a sociedade civil é basicamente autorregulada quando os cidadãos são livres para agir dentro das fronteiras de seus direitos individuais: o "laissez faire, laissez passer". É muito mais abrangente que a economia ou o livre-mercado, pois centra-se nas pessoas comuns e em sua busca por felicidade e prosperidade.
Por que brigar pelo nome liberal? Para manter uma coerência conceitual ao lidar com a história intelectual. Segundo a classificação de tipos ideais weberiana, há uma linha coerente em Locke, Hume, Smith, Jefferson, Burke, Turgot, Bastiat, Nabuco, Cairu, Mises, Campos e o liberalismo contemporâneo brasileiro. Mas o Fabiano gostaria, social-democraticamente, de substitui-la por uma interseção dos conjuntos formados por Keynes, Popper, Mill, Rawls e Merquior.
O foco passaria à supremacia da "expressão individual" e de uma "igualdade" imposta de cima para baixo, que difere integralmente da igualdade perante a lei. O conceito fundamentalmente liberal de propriedade privada (e da liberdade de seu uso) seria omitido em prol do chamado "bem comum", das decisões centralizadas e do intervencionismo. O liberalismo seria diluído a ponto de perder a significância. Não existiria consenso a respeito do campo de atuação do Estado. O golpe não vingará.
Toda a discussão sobre "liberalismo" da turma do Fabiano é sobre o que o presidente falou ou o que o Lula defende. O costume de supervalorizar o chefe do Executivo revela seu DNA iliberal –a velha dependência de um "pai do povo". Já deveriam saber que do Executivo só vem mesmo casuísmo: um plano setorial aqui, um aumento de alíquota acolá, um decretozinho proibitivo aqui, um segura-preço ali...
Os liberais têm um sedimentado programa para o país e seguirão buscando as vias políticas para tocá-lo, com foco no Congresso e casas legislativas, onde as mudanças estruturais são negociadas. Contudo, devem ocupar todos os espaços possíveis na administração pública. A lacração virtual pode ficar com os Fabianos de sofá, cada vez mais politicamente corretos e próximos ao PT.
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