Helio Mattar

Diretor-presidente do Instituto Akatu, foi secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério da Indústria e Comércio Exterior (1999-2000).

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Descrição de chapéu Coronavírus

O vírus como metáfora

Das epidemias globais, seria bom que deixassem algumas lições e, quem sabe, um novo estado de coisas

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O surgimento de um inimigo que vem na forma de um vírus, impossível de se ver, nos desperta da ilusão de que podemos nos livrar dos limites da fragilidade humana. De repente, um organismo microscópico nos interroga, nos detém e nos obriga a resolver o enigma que é, em última análise, o da condição humana.

A pandemia nos mostra que a sociedade mais complexa e interdependente em que vivemos é frágil, apesar das extraordinárias possibilidades originadas no progresso da ciência e da tecnologia. Os mecanismos de gestão, especialmente em momentos de crise, mostram-se falhos, assim como os líderes mundiais, perplexos frente à percepção de que tudo pode fugir ao controle, em escala planetária.

O enigma com o qual nos deparamos e para o qual precisamos de respostas exige, antes de tudo, o reconhecimento de que o mundo que construímos sofre de males muito anteriores ao surto do coronavírus. Males que agora são expostos e interferem na luta contra a doença: a desigualdade, os desastres ambientais e as consequências de um caminho não sustentável de desenvolvimento.

Do ponto de vista econômico, depois de acreditarmos nas possibilidades positivas e infinitas da globalização, somos obrigados a enfrentar limites impostos pela natureza para além dos desastres ambientais, agora na forma de vírus, que pode nos levar a uma depressão mundial.

E as consequências do surto atingem mais fortemente os pobres e vulneráveis. Pois mesmo no mundo desenvolvido, uma parte significativa da população está desprotegida, como mostram as condições de saúde pública de países como Estados Unidos e Itália.

A maior economia do planeta, que gasta trilhões de dólares em armas, não oferece à sua população um sistema de saúde universal. São 30 milhões de americanos sem seguro de saúde e 44 milhões com proteção limitada, sem poder pagar os custos de planos privados.

Na Itália, país europeu mais atingido pela epidemia, a saúde pública se mostra incipiente, consequência dos sucessivos cortes de investimento na área. Os italianos notam agora o valor inestimável de enfermeiros e médicos, que assumem o papel de heróis, mas em geral são mal remunerados e trabalham em situação longe da ideal.

Desta pandemia, como de outras, o mundo sairá. Mas será que a registraremos como apenas mais um triste acidente ou ela nos trará força para iniciarmos um caminho novo?

Para que se trilhe um novo caminho, será preciso surgir uma nova consciência, a partir justamente da certeza da interdependência. É ela que vai induzir a mudanças profundas de valores e à percepção de que o destino do mundo depende de todos e requer, de cada um, uma drástica revisão de prioridades, uma redefinição do que é realmente importante na vida.

As mudanças em nossas rotinas, pelo isolamento que o vírus nos impõe, podem servir como um grande laboratório para novas possibilidades. Ao sermos obrigados a parar, percebemos o absurdo de aspectos de nosso cotidiano, um círculo vicioso de mais trabalho, mais dívidas, mais consumo e menos tempo para o que é essencial.

A percepção por parte de empresas e dos profissionais de que se pode trabalhar de casa sem perda de eficiência, talvez facilite a evolução para formas mais flexíveis de trabalho. Esta seria uma verdadeira revolução, podendo melhorar a vida de milhões de pessoas, favorecer a economia e o meio ambiente.

Menos deslocamentos significam menos poluição, menos trânsito, mais tempo para estar com a família, estruturas empresariais menores, cidades mais humanas, possibilidades de mudanças não menos do que revolucionárias.

Por outro lado, neste momento em que nos deparamos com governos que desvalorizam a ciência e a pesquisa, fato que infelizmente ocorre também em nosso país, outra lição que tiramos da crise é a de que as evidências científicas são as únicas que podem orientar as ações para o combate a esta e a outras doenças.

Os países que melhor conseguiram controlar a epidemia foram os que mais prontamente seguiram orientações de profissionais e acadêmicos da área médica sobre sua prevenção e cura, tais como Taiwan, Coreia do Sul e Singapura. Sabemos ainda que o controle definitivo da doença virá apenas com a descoberta de uma vacina, que será fruto do trabalho de pesquisadores do mundo inteiro.

Mais do que tudo, podemos sair de nossas fragilidades reencontrando um forte espírito de comunidade. Um repensar do que é essencial, uma mudança de rumo em direção a estilos de vida e condições de desenvolvimento mais humanos e sustentáveis.

Há exemplos históricos de como um mal que atinge a humanidade desprevenida pode levar ao surgimento de um novo estado de coisas. A epidemia da Peste Negra devastou boa parte da população europeia no século 14. Seu impacto resultou em mudanças profundas nas áreas social, econômica, cultural e religiosa que, direta ou indiretamente, levaram ao surgimento do Renascimento.

Mais perto de nós está a reflexão que Camus deixou com seu romance A Peste, obra que agora, por motivos óbvios, voltou a ser um best-seller. A Peste passa-se nos anos 1940, em Oran, pequena cidade do norte da África, “onde a vida é monótona e os habitantes vivem para o trabalho e para o acúmulo de riquezas.” Metáfora do mal que na época era representado pelo nazifascismo (aliás, mais atual do que nunca), é também uma alegoria moral que reflete como a proximidade da morte pode resgatar a essência das relações humanas, despertando sentimentos de solidariedade e empatia.

A pandemia nos lembra que, para conseguirmos superá-la, não é suficiente praticarmos o “cada um por si e Deus por todos”, é premente recuperarmos o sentido do nós.

Como disse o sociólogo italiano Domenico De Masi recentemente ao jornal O Globo, “quando finalmente festejarmos o momento suspenso em que é finda a angústia e ainda não está claro o porvir, quando tentarmos esquecer o período que acabou de passar (uma experiência inédita de impotência em larga escala), talvez tenhamos aprendido que nem mesmo o medo da morte pode estabelecer igualdade entre os homens, mas que o afeto humano continua sendo nossa única salvação”.

O autor reconhece e agradece a colaboração de Maria Cristina Nascimento na construção deste texto, mantendo-se, no entanto, responsável único pelo seu conteúdo

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