Helio Mattar

Diretor-presidente do Instituto Akatu, foi secretário de Desenvolvimento da Produção do Ministério da Indústria e Comércio Exterior (1999-2000).

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Descrição de chapéu sustentabilidade

Consumindo (n)o Antropoceno

A integração da ciência moderna com os saberes indígenas pode nos indicar estilos de vida mais sustentáveis

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Isleide Fontenelle

Esta coluna foi escrita para a campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Em julho, colunistas cedem seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Isleide Fontenelle, socióloga e professora da FGV-SP.

A comunidade científica vem reunindo evidências de transformações no sistema terrestre que ultrapassam as mudanças climáticas: deixamos pegadas geológicas na crosta do planeta. As causas da magnitude dessas alterações remontam à Revolução Industrial, marco de um modo de produção e consumo que ensejou a grande aceleração rumo ao que passou a ser conhecido como Antropoceno —o novo tempo da Terra, em que a humanidade, entendida como espécie, se tornou uma força geológica. Há, portanto, um consenso científico de que estamos vivendo em um planeta danificado pela ação humana.

As ciências da Terra e do clima dão por certa a catástrofe e clamam pela urgência de alguma providência, se bem que ainda pairem inúmeras incertezas a respeito das soluções (im)possíveis à altura dessa tragédia. Muitas respostas continuam assentadas na busca de uma conciliação entre nosso modo de vida consumista e um planeta espoliado por essa lógica.

Manifestantes protestam contra o uso de combustíveis fósseis; marcha aconteceu em abril deste ano, em Londres
Manifestantes protestam contra o uso de combustíveis fósseis; marcha aconteceu em abril deste ano, em Londres - Tolga Akmen/AFP

Abrir mão dessa forma de vida nos parece impraticável, dado que o consumo é o motor do sistema capitalista, e é também o que estrutura nossa vida cotidiana, nossas identidades e sociabilidades, nossos projetos e sonhos. Não por acaso, sempre buscamos saídas em torno da sustentação dessa forma de ser consumidor, e na aposta de que a ciência será capaz de encontrar uma resposta que mantenha o mundo operando do jeito que conhecemos.

Os historiadores da ciência Christophe Bonneuil e Jean-Baptiste Fressoz argumentam que o Antropoceno "é o sinal do nosso poder, mas também da nossa impotência". Como sinal de poder, ele reforça a grande narrativa da espécie humana e sua redenção pela ciência, pois se a ação da humanidade vem alterando negativamente a Terra, o ser humano será capaz de resolver os problemas por meio da razão, da ciência, e dos avanços tecnológicos.

Como sinal da impotência humana, o Antropoceno expõe rachaduras nesse projeto moderno de dominação e controle da natureza. Em outras palavras, a ciência é fundamental para diagnosticar e propor soluções, desde que ela mesma não seja enredada em um compromisso perverso com as lógicas de mercado que levam ao consumo excessivo.

Se entendermos consumo como uso das coisas, não é possível imaginar uma sociedade onde não haja alguma forma de consumo. O problema é quando o consumo se torna o eixo estruturador da vida econômico-social, sem o qual nossa vida parece desmoronar.

Seria factível sonhar outros sonhos que não esses que povoam nosso imaginário consumista? Imaginar outros modos de viver? É nesse ponto, sobre pensar saídas, que proponho a necessária integração da ciência moderna com os saberes e ciências indígenas, baseados em sua ontologia animista e em seu profundo conhecimento e respeito ancestral pela natureza. (Essa integração é possível, como prova o evento "Os mil nomes de Gaia", que reuniu cientistas de diversos campos para pensar as dimensões do Antropoceno e explorar seus desafios. Publicado em livro, esse acontecimento revela qual ciência pode ajudar na reconstrução do Brasil, e em que termos.)

Tal integração se justifica, ainda, pelo exemplo de vida que esses povos nos oferecem, acenando com a possibilidade de encontrar sentido e vivenciar outras experiências para além do mundo do shopping center e das redes sociais.

Não estou propondo que façamos o caminho de volta, que passemos a viver como os povos da floresta, até porque não há mais caminho de volta. Sugiro apenas que tomemos as comunidades indígenas como um dos exemplos possíveis de outros humanos e outros mundos no mundo.

Com base em meu conhecimento do campo dos estudos críticos do consumo, noto um desamparo diante da aceitação da catástrofe ambiental e da impossibilidade de projetar outra forma de vida que não a constituída pela moderna civilização ocidental, essa que precisa aprender a morrer. Nas sábias palavras do intelectual indígena Ailton Krenak, "talvez estejamos muito condicionados a uma ideia de ser humano e a um tipo de existência. Se a gente desestabilizar esse padrão, talvez a nossa mente sofra uma espécie de ruptura, como se caíssemos num abismo. Quem disse que a gente não pode cair? Quem disse que a gente já não caiu?".

Krenak aponta como o impossível se torna possível quando mudamos as coordenadas para olhar o mundo e operar a realidade. O Antropoceno é da esfera do impossível, não deve ser mais uma palavra da moda, como tantas outras criadas para justificar um engajamento com um modo de consumir mais "cool", enquanto consumimos nosso planeta.

Quanto à #ciêncianaseleições, concluo lembrando uma máxima, na literatura do comportamento de compra, que diz que votamos quando pagamos por nossas despesas, no sentido do quão corretas (ou não) foram nossas escolhas de consumo. Prefiro acreditar que votamos quando vamos às urnas e escolhemos candidatos que trabalham a favor de todas as vidas, humanas e não humanas, tarefa essencial no Antropoceno.

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