A polêmica é deliciosa. Em 2017, a bancada religiosa da Assembleia Legislativa paulista aprovou uma lei que autorizava presos a usar a leitura da Bíblia para abater dias de sua pena. O então governador Geraldo Alckmin vetou pontos da norma, por entender que eles invadiam competência federal. Inconformados, parlamentares embalaram os trechos vetados num novo projeto, que foi aprovado em 2018 e sancionado pelo então novo governador Márcio França.
O Ministério Público do Estado viu aí inconstitucionalidade e contestou a lei. O TJ decidiu há pouco que os procuradores têm razão. Só a União poderia legislar sobre penas.
A polêmica é deliciosa porque evoca o bíblico "perdoai-os, porque não sabem o que fazem". Se o objetivo dos religiosos era assegurar que a leitura da Bíblia valesse para efeitos de remição de pena, então não deveriam ter feito nada.
O regramento do Conselho Nacional de Justiça sobre a matéria (recomendação nº 44) já autoriza abater quatro dias de pena pela leitura de obra "literária" ou "clássica", entre outras. E, do ponto de vista do Estado, que é neutro em questões religiosas, a Bíblia é apenas um livro velho, não muito diferente da "Ilíada" ou da "Epopeia de Gilgamesh", encaixando-se com perfeição tanto na categoria literatura como na dos clássicos.
Quando os religiosos tentaram reclamar uma dignidade especial para seu livro favorito, dando-lhe lugar de destaque na legislação, se meteram num poço de inconstitucionalidade.
Pensar a Bíblia como apenas mais um livro é um exercício interessante. Como provoca o cético Michael Shermer, nos últimos 10 mil anos, os homens produziram cerca de 10 mil religiões com pelo menos mil deuses. Qual é a probabilidade de que Jeová seja o verdadeiro e Amon Ra, Zeus, Apolo, Baal, Odin, Mitra, Gilgamesh e mais 992 sejam todos falsos? E, se já nos tornamos ateus em relação a 999 deuses, por que parar em Jeová?
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