Homero existiu? E Shakespeare? O fato de dois dos maiores literatos de todos os tempos terem tido sua existência questionada diz algo a respeito da estranha relação que estabelecemos com autores que se tornam grandes demais para permanecer humanos. No caso do inglês, os questionamentos nunca passaram de teorias da conspiração que atribuíam sua obra a terceiros, de Bacon a Marlowe passando por diferentes membros da nobreza britânica. No do grego, porém, temos motivos para acreditar que ele pode mesmo não ter existido.
Por indicação de uma coluna de Mario Sergio Conti, li "Hearing Homer’s Song", de Robert Kanigel, que pode ser descrito como a biografia do homem que matou Homero. Kanigel conta a história de Milman Parry, o acadêmico americano cujo trabalho, desenvolvido por volta dos anos 1930, fez com que a questão da autoria da "Ilíada" e da "Odisseia" fosse virada de cabeça para baixo.
Encucado com os epítetos de heróis e deuses, que se repetem com perturbadora abundância, Parry levantou a hipótese de que fossem artifícios da tradição oral que permitem a trovadores analfabetos trabalhar os versos sem perder a métrica. E Parry fez mais do que só levantar a hipótese. Ele também liderou duas expedições à Iugoslávia, onde localizou alguns desses homeros modernos, incapazes de escrever, mas não de criar histórias e cantá-las.
A partir da obra de Parry, os acadêmicos pararam de perguntar quem foi Homero. Seus poemas são uma criação coletiva, composta por legiões de poetas-cantores anônimos. E não é só Homero e os épicos iugoslavos. Outro personagem do livro, Albert Lord, o assistente de Parry, generalizou essa ideia após a trágica morte do professor, em 1935, para abarcar várias outras obras, como "Beowulf", "Canção de Rolando" e histórias de inúmeras culturas, inclusive ágrafas. Parry matou Homero, mas revelou algo fascinante sobre o pendor humano por criar e contar histórias.
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