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hélio schwartsman

 

03/09/2009 - 00h03

A ética de Hipócrates

Eu e os médicos do Brasil concordamos que o Código de Ética Médica (CEM) vigente, que data de 1988, precisava ser revisto, mas acho que é só. Uso o "acho" por uma razão muito precisa. Embora eu esteja há quase uma semana atrás do novo texto, que foi aprovado no último sábado no âmbito da Comissão de Revisão e ainda precisa passar pelo plenário do Conselho Federal de Medicina (CFM), não consegui obtê-lo. A razão alegada, até a aprovação, era que o documento ainda poderia sofrer modificações; depois, passou a ser que ele necessita de uma revisão jurídica. Escrevo, portanto, baseado em relatos indiretos de pontos específicos que, por diferentes vias, vazaram para a imprensa.

Lembrando que foram quase dois anos de muitos debates e alguma propaganda, minha sensação geral é de que a montanha pariu um rato. Seria, é claro, injusto afirmar que não houve nenhum tipo de avanço, mas receio que as mudanças tenham sido menos substanciais do que eu gostaria. Há até caso de retrocesso em comparação com resoluções que haviam sido baixadas pelo CFM.

Refiro-me especificamente à norma CFM 1.805/06, que autorizava o abandono do chamado "tratamento fútil", isto é, a utilização de todos os recursos para manter vivo um paciente terminal. A resolução foi suspensa pela Justiça a pedido do Ministério Público. Só que, em vez de comprar essa briga, que é necessária, os médicos preferiram capitular. Embora o novo CEM traga alguns artigos relativos aos cuidados paliativos, ele aparentemente avança muito pouco tanto na questão da ortotanásia (o não prolongamento artificial da vida) como da eutanásia ativa (a aplicação de drogas que provocam a morte).

Até para manter a população bem informada, os médicos deveriam ter vindo a público para mostrar que decisões de não reanimar pacientes com pouca ou nenhuma chance de recuperação são tomadas todos os dias em todas as UTIs e salas de emergência do país. E é preciso que seja assim, ou teríamos uma legião de doentes crônicos ocupando permanentemente respiradores e outros apetrechos, que deixariam de estar disponíveis para pacientes que, superada a moléstia, teriam ainda vários anos de vida adiante. Aqui, não há como furtar-se a uma decisão. Não fazer nada já significa arbitrar quem vai morrer e quem vai viver.

Coisas semelhantes podem ser ditas do problema da relação dos médicos com a indústria farmacêutica. Embora eu não seja um daqueles xiitas que querem simplesmente proibir todo e qualquer contato entre laboratórios e profissionais de saúde, o novo CEM avança muito pouco nessa seara. Acredito até que fique aquém de resoluções já baixadas pelo Conselho.

Não é apenas o comodismo político que me desagrada mas também a concepção filosófica que parece estar por trás do novo CEM.

Tomemos o exemplo das regras para a reprodução assistida. Ao que consta, o novo estatuto proíbe a escolha do sexo do bebê bem como algumas técnicas hoje utilizadas por aqui. Em primeiro lugar, é uma bobagem tentar disciplinar técnicas num código. Como elas estão em constante mudança, congelá-las numa peça jurídica significa condenar o documento a tornar-se obsoleto num par de anos. Teria sido mais prudente enumerar princípios gerais e cuidar das especificidades técnicas através de resoluções.

O que me incomoda mesmo aqui é a questão da sexagem. Por que pais não podem escolher se querem um menino ou uma menina? Até admito teríamos um problema demográfico, caso uma parcela significativa da população tivesse seus filhos através de fertilização "in vitro" e se brasileiros, a exemplo de chineses e indianos, tivessem inequívoca predileção por bebês do sexo masculino. Como as duas condições são falsas, não há explicação racional para o veto. Aliás, se houvesse, deveríamos estendê-lo a quem adota crianças.

Ao que tudo indica, a proibição repousa sobre considerações metafísicas: a sempre sábia natureza estabeleceu uma razão entre os sexos que a impura tecnologia não deve conspurcar. Ora, se há um adjetivo que vai bem com a palavra "natureza" é "indiferente", talvez até "cruel". O segredo do sucesso da raça humana foi justamente ter aprendido a dominar a natureza e colocá-la a seu serviço. Se fosse apenas por ela, não viveríamos mais do que 20 anos e a maioria de nossos filhos sucumbiria a amebas, giárdias e outros microrganismos diarreicos. Esse tipo de raciocínio que endeusa a natureza e lhe atribui um caráter moral não combina com o espírito científico que deveria orientar a atuação de médicos.

O mesmo viés metafísico se repete na questão da autonomia. A crer nas declarações dos bioeticistas que participaram da elaboração do novo CEM, o paternalismo cedeu espaço para a autonomia decisória do paciente. Não duvido de que a intenção tenha sido essa, mas temo que tal expectativa se frustre na redação do dispositivo, que faz com que a autonomia prevaleça apenas até o ponto em que não há "risco de morte iminente".

Evidentemente, quem julga o perigo é o médico e não o paciente. E isso basta para destruir a noção de autonomia. Nenhum doente precisa de licença para fazer aquilo que o profissional de saúde quer dele. Para o conceito de autonomia do paciente parar em pé, ele precisa valer quase incondicionalmente, mesmo contra a vontade do médico, da enfermeira, do diretor do hospital e do CFM. E especialmente quando há risco de morte.

Podemos até discutir se membros das Testemunhas de Jeová podem ou não impedir seus filhos menores de receber doações de sangue em situações de emergência, mas em qualquer ponto do Ocidente livre eles têm o direito líquido e certo de recusá-las para si mesmos. Se o fazem com base num delírio religioso ou numa decisão racional, é uma questão que não compete nem a médicos nem a juízes decidir. Acreditar que Deus se ofende com a transferência de hemácias não é objetivamente mais nem menos racional do que crer na transubstanciação ou na santíssima trindade. Cada um deve ser livre para decidir o destino de seu próprio corpo independentemente das justificativas teóricas que possa apresentar.

Se cabe alguma exceção ao princípio da autonomia, ela deve ser restrita a casos de surto psicótico e outras manifestações psiquiátricas muito bem definidas. Em qualquer hipótese, não faz sentido jurídico que o médico dê a última palavra sem nenhum tipo de controle externo. Se até um bandido que constitui ameaça real à sociedade só pode ser privado de sua liberdade quando apanhado em flagrante delito ou mediante ordem judicial (CF, art. 5º, LXI), é preciso aplicar ao doente pelo menos idêntico nível de proteção.

Não estou, com essas análises, sugerindo que médicos sejam todos pequenos ditadores ansiosos por encarcerar e torturar seus pacientes. Na esmagadora maioria das vezes, os médicos se entendem relativamente bem com seus pacientes. Mas, se a ideia é escrever um Código, precisamos antecipar as piores situações e tentar solucioná-las da melhor maneira possível. Daí que considero temerário atribuir aos próprios médicos a tarefa de regularem eles mesmos suas relações com os pacientes. É o que faz o Estado brasileiro ao, seguindo suas piores tendências corporativistas, conferir ao CEM --um documento "interna corporis"-- o estatuto de lei federal válido para toda a nação.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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