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hélio schwartsman

 

25/11/2010 - 07h00

Santos, mártires e heróis

O comportamento é disseminado e atinge indistintamente fiéis e guerrilheiros, filósofos e soldados. Estou falando da disposição de morrer por uma ideia. Praticamente todas as religiões têm seus mártires, que foram assassinados por defender sua fé. Não é apenas a confiança numa outra --e melhor-- vida que move os candidatos a santo. O fenômeno, afinal, ocorre também em esferas mais seculares, como exércitos, e mesmo ateias, como movimentos revolucionários de esquerda. Até a ciência cultiva seus heróis. De minha parte, acho que não há nada mais estúpido do que morrer por uma ideia, seja ela religiosa ou laica, mas avancemos com um pouco mais de calma.

Ainda bem que ninguém mais lê vidas de santos. Se querem entupir o Monteiro Lobato de notas por ter empregado linguagem racista, que cautelas não teríamos de adotar antes de permitir que crianças lessem, por exemplo, a história de santo Eustáquio, que, segundo reza a lenda, preferiu ser cozinhado vivo junto com sua mulher e filhos a oferecer sacrifício a deuses pagãos. Será que um alerta do tipo "não tente fazer isso em casa" bastaria?

O ponto central é que as vidas de santo, as histórias de martírio e gestos de heroísmo são repetidos aos quatro cantos justamente porque alguém vê neles um valor a ser imitado. Aqui, a nota acabaria com o propósito mesmo do relato hagiográfico. OK. Admitamos que deixar-se cozinhar num caldeirão é um caso extremo, que ninguém em sã consciência defenderia nos dias de hoje. Será?

Mesmo reconhecendo que existem níveis de dor que dobram qualquer um, olhamos com desconfiança para o ex-guerrilheiro que, sob tortura, teria dado com a língua nos dentes. A própria Constituição do pacífico Brasil prevê a pena de morte em caso de guerra, ou seja, para aqueles que, orientando-se no mais justificável bom senso, se recusarem a lutar (a maior parte das guerras ocorre por motivos bem imbecis, é bom lembrar).

De todo o panteão de santos e heróis, fico com Galileu Galilei, que, muito sensatamente, não teria hesitado antes de abjurar a teoria heliocêntrica para poder continuar vivendo.

Cuidado. Não estou aqui afirmando que é uma tolice cultivar alguns princípios e defender ideais. Só o que digo é que existe um limite máximo até onde levar a luta: a vida. Não sou apenas eu que penso assim. Trago em meu socorro Charles Darwin, cuja teoria mundialmente famosa preconiza que devemos sobreviver a quase qualquer custo e fazer muito sexo. Se, em determinadas circunstâncias, ainda faz sentido que nos sacrifiquemos para salvar um ou mais parentes (idealmente, dois irmãos ou oito primos), fazê-lo em favor de uma abstração é um beco sem saída evolutivo. Prova-o o fato de ninguém até hoje viu nenhum animal além do homem defendendo uma ideia até a morte.

E, se estamos diante de um comportamento exclusivamente humano, bem disseminado (quase um universal) e que aparentemente não faz muito sentido biológico, trata-se de algo que vale a pena investigar melhor.

A primeira pergunta a se fazer é: para que diabos a vocação para mártir serve? Temos aqui duas possibilidades, ou bem ela é uma adaptação humana obtida por seleção natural ou é apenas um efeito colateral resultante da forma como nossos cérebros estão montados. Seria relativamente fácil demonstrar que o altruísmo radical, embora faça mal ao indivíduo que o comete, serve aos propósitos do grupo em que ele vive. O incentivo ao heroísmo, afinal, tende a produzir soldados mais valentes e sociedades mais coesas, como se vê nos movimentos nacionalistas. A seleção aqui não ocorreria no nível do indivíduo (ou dos genes, como quer Richard Dawkins), mas do grupo.

E aqui nós entramos num dos terrenos mais pantanosos do neodarwinismo. Os biólogos mais puristas, se não rejeitam, consideram a seleção de grupo extremamente complicada. O problema básico é que ela não é lá muito estável. Para começar, o sujeito que se sacrifica tem maiores chances de não deixar descendentes, extinguindo junto consigo os genes responsáveis pela propensão a colaborar. Para secundar, sempre valeria a pena para indivíduos egoístas pegar uma carona na coesão grupal sem dar sua justa contribuição. Eles teriam maior sucesso reprodutivo, espalhando genes egoístas. Seria assim muito difícil fixar num 'pool' genético qualquer as características que favorecem o grupo.

Parece mais promissor imaginar a vocação para mártir como um subproduto de outras funções cerebrais. Uma analogia válida é o uso recreativo de drogas como maconha e álcool. Ninguém --espero-- vai sugerir que a capacidade de sentir barato e ficar bêbado representam uma adaptação humana. O efeito que drogas têm sobre nós é mais bem descrito como um acidente: são substâncias que exploram, de forma por vezes parasítica, os centros de prazer e recompensa do cérebro, cujas finalidades primordiais são o aprendizado e a fixação de hábitos que satisfaçam necessidades vitais, como engordar e fazer sexo.

Quais seriam as estruturas cognitivas que o martirismo explora? Aqui não podemos fazer muito mais do que especular. Uma possibilidade é que ele funcione de forma parecida com a elaboração do luto. Originalmente, serviria mais para tentar dar um sentido à morte de entes queridos que tombaram em conflitos do que para convencer os sobreviventes a meter-se no mesmo caminho. Seria uma forma meio esquisita de aplacar nossa ânsia por transcendências. O instinto de preservação, que costuma ser forte, já funcionaria como um freio a interpretações excessivamente literais do autossacrifício.

Num momento posterior, religiões, Estados e dirigentes de células revolucionárias descobriram o poder que a vocação para o heroísmo exerce sobre alguns indivíduos e decidiram explorá-la em favor dessas organizações. Vale lembrar que aqui nós já não estamos mais falando de seleção de grupo no sentido clássico, pois, ao contrário de um clã de caçadores perdido na floresta, uma igreja ou um país não dependem mais da fixação de um 'pool' de genes para sobreviver. Essas superestruturas, ou memes, para utilizar o vocabulário neodarwinista, desde que tomem o cuidado de não esgotar rapidamente os recursos humanos à sua disposição, podem perfeitamente explorar indivíduos.

A crer nessa chave hermenêutica, religião, ideologia, nacionalismo e cerca de 3/4 da literatura têm um substrato comum, que se aproveita da inclinação natural de nossas mentes por histórias de heroísmo. Como ocorre com as drogas, o fenômeno é legítimo até o ponto em que nos proporciona prazer e preenche alguns vazios existenciais. Deixa de sê-lo quando passa a nos impor ônus despropositados. Se há um verdadeiro crime contra a natureza, ele não está em formais mais imaginativas de fazer sexo, mas em exigir que alguém dê a própria vida por uma ideia abstrata --e, em geral, carente de comprovação.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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