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hélio schwartsman

 

17/02/2011 - 07h03

A democracia é para todos?

Alguns leitores se queixaram do que consideraram um tom colonialista na minha coluna da semana passada. Salvo melhor juízo, referem-se a um trecho do último parágrafo no qual afirmei que o Egito, por tratar-se de uma sociedade razoavelmente industrializada e letrada, e não uma tribo indígena perdida no meio da Amazônia, deveria, sim, tentar instituir uma democracia autêntica.

Reconheço uma postura, talvez não colonialista, mas certamente paternalista. E receio que essa seja uma das armadilhas impostas pela modernidade à qual não se pode escapar.

Comecemos com um experimento mental ao qual já recorri em outras ocasiões. Vamos supor que o governo brasileiro, em súbito arroubo civilizatório, decidisse invadir "manu militari" todos os territórios ianomâmis para neles estabelecer eleições diretas por sufrágio universal para o cargo de chefe da tribo. As Forças Armadas, auxiliadas pela inestimável PF, abririam à bala caminho para as urnas eletrônicas, tecnologia 100% nacional. Não é preciso PhD em antropologia para perceber que essa seria uma ação violenta e absolutamente injustificável.

Num caso como o de índios isolados ou nem tanto é fácil perceber que não podemos impor-lhes o nosso conceito de democracia ou mesmo de representação. A noção de eleição direta para chefe não faria muito sentido para eles. Se quisermos ser verdadeiramente democráticos, devemos respeitar a chamada autodeterminação dos povos, deixar que as aldeias sigam seu modo milenar de gestão política e social, mesmo que incluam práticas que sejam tipificadas como crime em nosso Código Penal, a exemplo do espancamento de mulheres e do infanticídio.

Nos últimos anos, principalmente por conta do trabalho de autores como o geógrafo Jared Diamond, vem se popularizando a noção de que encontros entre civilizações com graus muito díspares de tecnologia resultam quase que inevitavelmente na destruição da sociedade menos desenvolvida. O fenômeno não ocorre apenas devido a uma atitude belicosa por parte dos que possuem melhores armas, como foi o caso da conquista das Américas, mas também por uma série de outros mecanismos.

O mais efetivo deles, pelo menos no nosso continente, foi a guerra microbiana. A maioria das doenças com características epidêmicas surgiu depois que o homem desenvolveu a agricultura e passou a viver em grandes cidades. Assim, populações citadinas não apenas desenvolveram resistência a elas como carregam para onde vão cepas atenuadas de vírus e bactérias que não lhes causam mal, mas podem ser fatais para sistemas imunes que não as conhecem.

Um pouco por caprichos do destino, um pouco pelo acúmulo de trocas com a Ásia e a África, as doenças europeias eram mais letais para os ameríndios do que a recíproca inversa. Foi assim que a varíola e a gripe causaram mais baixas entre os índios do que os conquistadores Pizarro e Cortés juntos.

Mais sutil mas não menos importante é a assimetria do choque cultural. Se encontrarmos amanhã uma nova comunidade humana, com hábitos totalmente inesperados, isso significará, para nossa civilização, pouco mais do que a abertura de um novo capítulo na antropologia, no máximo, na psicologia, se julgarmos que suas atitudes afrontam o que chamávamos de natureza humana. Já quando índios descobrem o homem branco, é o próprio mundo como eles o conheciam que rui, com a introdução de novas tecnologias, doenças, línguas, conceitos consubstanciados em mudanças bruscas.

A melhor forma de preservar essas culturas e a própria existência física dos indivíduos que as constituem é fazer de tudo para evitar o contato, como vem sendo a diretriz da Funai para tribos isoladas nos últimos tempos. Trata-se sem dúvida de paternalismo, pois nem ao menos damos aos índios a possibilidade de decidir qual modo de vida preferem. Mas é sempre oportuno lembrar que a alternativa a esse paternalismo costuma ser o genocídio, às vezes até com boas intenções, como é o caso de missões de catequização, mas ainda assim genocídio.

À luz dessas ideias, vale a pena perguntar: a democracia é de fato um universal, um princípio que deve valer para todos os povos independentemente de tradições, hábitos e cultura política? Por maior que seja nosso apego à ideia de sociedade aberta, acho difícil dar um "sim" incondicionado como resposta.

A questão que se impõe então é saber o que diferencia um ianomâmi de um egípcio, chinês ou qualquer outro povo que ainda não tenha abraçado integralmente as delícias da democracia. Por que estamos dispostos a respeitar quase incondicionalmente os costumes dos índios brasileiros, mas denunciamos como farsa --e muito justamente, diga-se-- o discurso lulo-itamarateca de que é preciso seguir o princípio da não interferência em relação a iranianos e cubanos? Como conciliar o respeito à chamada autodeterminação dos povos (sem o qual a CIA teria legitimidade para armar o que quisesse nos país que desejasse) com o primado do respeito aos direitos humanos (que nos autoriza a criticar os irmãos Castro e os aiatolás)?

A resposta, se existe, não é trivial. Uma possibilidade é considerar que a autodeterminação é um princípio válido, mas condicionado. Ela deve ser respeitada desde que direitos humanos de outros grupos não estejam ameaçados. Acho que essa é a interpretação que vem prevalecendo. É com base nela que o Ocidente agiu na ex-Iugoslávia, por exemplo. Não bastou, entretanto, para evitar o genocídio de Ruanda e, atualmente, em Darfur (Sudão).

Embora eu acredite que se deve mesmo agir supranacionalmente quando um grupo ameaça concretamente a existência de outro, sou forçado a reconhecer que a defesa desse princípio coloca dificuldades. Não há governo no mundo que não fira em alguma medida direitos humanos. Que direitos precisam estar ameaçados e em que grau para que seja lícito agir contra um país?

É fácil chegar a um acordo quando falamos de grandes genocidas como Hitler ou Pol Pot. Mas e quando há repressão sistemática contra um grupo mas que não chega a ameaçar sua existência física? Penso nos casos dos palestinos e dos curdos, entre vários outros povos que lutam por um Estado. Quantos devem morrer para que repressão se torne massacre e massacre se torne um genocídio a exigir e justificar uma intervenção humanitária?

Vale notar que também corremos o risco de cair no extremo oposto. Se formos defender operações globais contra qualquer ameaça a direitos, nos veremos em maus lençóis. Um exemplo: até 1971 (outro dia, em termos históricos), mulheres suíças não tinham o direito de votar em eleições federais. Tratava-se, sem dúvida, de clara ameaça a direito de metade da população helvética. Devíamos então ter enviado os tanques da Otan contra Berna? Perdoem-me as mulheres, mas seria ridículo.

Voltando à diferença entre ianomâmis e egípcios, talvez devêssemos então decretar que a democracia é um valor que deve ser respeitado a partir do momento em a sociedade atinge um certo grau de sofisticação. O Ocidente deixa os ianomâmis em paz, mas pode cobrar a realização de eleições livres nos países árabes, como fazia em relação ao Leste Europeu.

Estou convencido de que a resposta é por aí, mas isso não impede que surjam mais perguntas incômodas. Qual o grau de "civilização" a partir do qual se torna obrigatório seguir a democracia? E o que fazer no caso de vitória eleitoral de um grupo que tenha em sua agenda elementos antidemocráticos, como poderia ocorrer no Egito na hipótese de a Irmandade Muçulmana triunfar e tentar impor a "sharia", a lei muçulmana, a todo o país?

Longe de mim querer diminuir o valor e a importância da democracia. Como Churchill, acredito que ela é o menos pior dos regimes que experimentamos até aqui. Também não sou um advogado do relativismo. Não creio que o saber dos povos da floresta valha tanto quanto a civilização ocidental. Mas daí não se segue que tenhamos o direito de passar o trator por cima de tudo o que não se encaixe nos princípios que consideramos universais.

A grande verdade é que pensamos através de metáforas e conceitos aos quais gostamos de atribuir realidade. A partir de um certo ponto, acabam mesmo ganhando alguma materialidade. O problema é que o mundo, com seu amplo matiz de nuances, nem sempre se ajusta a nossas ideias. Nessas situações, é sempre melhor ser pragmático. No dia a dia de nosso planetinha, incontáveis crimes ocorrem por razões de ordem prática, como "você bateu no meu carro", "você roubou minha mulher". Mas, quando se trata de crimes de lesa-humanidade, como genocídios e faxinas étnicas, é sempre algum idealismo que está por trás.

hélio schwartsman

Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou 'Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão' em 2001. Escreve de terça a domingo.

 

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