Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Henrique Gomes

Da mulher de Einstein a Nobel de Física, machismo persiste na ciência

Caso de ganhadora do prêmio sem cargo acadêmico mostra que hostilidade atravessa séculos

Na semana passada, Donna Strickland, professora da Universidade de Waterloo (Canadá), ganhou um prêmio Nobel. O prêmio é o de física e foi conferido pela invenção de importantes técnicas de laser.

Será dividido por três recipientes: o professor Mourou, o professor Ashland e a doutora Strickland.  A vitória de Strickland é duplamente incomum: porque ela é só a terceira mulher a vencer o Nobel de Física e porque ainda leva o título de professora assistente, e não o de professora titular (o que lhe concederia o título de professora).

Misoginia logo vem à mente como explicação —por ser mulher, Strickland teria tido mais dificuldade em progredir na carreira acadêmica do que em fazer descobertas dignas de um Nobel.

Ela logo nega. Diz que nunca se interessou pelos postos mais bem pagos e mais prestigiosos dentro da universidade e por isso nunca se candidatou. Mesmo assim, a pergunta fica: por que não se interessou, ao passo que praticamente a totalidade de homens no nível de Strickland resolve galgar a escada acadêmica?

Ainda hoje, a divisão por gêneros nos altos postos da física é uma lavada para o time masculino. Teríamos evoluído historicamente nessa área, como temos evoluído em tantas outras? Dados há muitos; explicações, outras tantas; mas nada muito encorajador.

Os obstáculos —patentes ou insidiosos— vêm de uma linhagem antiga. Para ilustrar os dados,  o melhor é uma anedota; e melhor ainda se envolver um dos maiores físicos da história.

Se você encontrasse Albert Einstein na rua em Berna, em meados de 1901, a caminho de uma entrevista de emprego, não teria muitos motivos para se impressionar: um homem desempregado, com uma namorada grávida e, para completar a pintura, andava com o cabelo desgrenhado (no começo do século, na Suíça, lembremos).

Um começo de história que frequentemente termina com um pequeno suspiro, não com um Big Bang.

Einstein acabara de se formar na prestigiosa escola politécnica em Zurique (ETH), mas, incapaz de obter qualquer posição acadêmica, precisou de favores de amigos para conseguir um trabalho burocrático no escritório de patentes em Berna. Desanimado com suas perspectivas como físico, parecia grande a chance de que se resignasse àquela profissão.

Mas, se o encontrasse na rua, você não saberia que a namorada grávida era Mileva Maric, também física prodigiosa. Mileva vinha de uma família influente na Sérvia, tão influente que seu pai pode interceder diretamente com o ministro da Educação para que ela estudasse física numa escola só para garotos.

milena maric e einstein jovens
Mileva Maric com o marido Albert Einstein - Reuters

O esforço valeu a pena: Mileva foi a segunda mulher na história a ser admitida no ETH, em 1896, onde se tornaria inseparável colega de estudos de Einstein.

Os dois tinham dificuldades distintas no mundo acadêmico: Einstein era irreverente à autoridade, o que lhe trazia sua dose de antagonismo pelos professores, e Mileva... Bem, Mileva era mulher no século 19. Ao final de seu curso, os dois tiveram desempenhos semelhantes (4.7 e 4.6, respectivamente), com a exceção de física aplicada, na qual ela recebeu a nota máxima, 5, e ele, só 1.

Apesar disso, no exame oral final, o professor Minkowski —cujo nome é hoje lembrado sobretudo pela geometrização da teoria da relatividade restrita de Einstein— atribuiu nota 11 de 12 aos quatro alunos homens do curso, mas só 5 a Mileva. Difícil imaginar que o preconceito não tenha erguido ali mais um obstáculo, invisível aos colegas homens.

Radmila Milentijevic, ex-professora de história no City College (Nova York), publicou em 2015 uma extensa biografia de Mileva (ainda não editada no Brasil). Nela, inúmeras cartas e documentos, de amigos e família, mostram que Einstein e Mileva colaboraram em proximidade, do dia em que se conheceram até sua separação, na segunda década do século 20.

É certo que Mileva estimulou e motivou Einstein, não permitindo que o trabalho no escritório de patentes esgotasse o seu potencial, e é bastante provável que tenham trocado ideias e notas, dia após dia, e noite adentro, e que ela o tenha ajudado a escrever artigos e palestras.

Contudo, o quanto Mileva precisamente contribuiu no desenvolvimento dos primeiros artigos que levaram Einstein à fama é ainda assunto controverso. Há bastante evidência de que um dos primeiros e menos famosos (sobre ação capilar) tenha sido escrito a duas mãos, mas assinado só por uma, a de Einstein.

Por quê? Provavelmente Mileva acreditava que assim ele teria maiores chances no mundo acadêmico. Queira ou não, o preconceito da época se infiltrara até em uma personalidade forte como a dela. Não é ir longe pensar que possa ter infiltrado, de formas sutis, as ambições de Strickland.

Em um aspecto, certamente evoluímos bastante de Einstein até 2018: a ciência hoje é mais aberta; na maior parte do mundo moderno não é preciso interceder com o ministro da Educação para poder estudar física, e milhares de mulheres já passaram pelo ETH.  

Por outro lado, é ridículo nos parabenizarmos por comparação ao começo do século. Uma semana antes do anúncio do Nobel, o famoso laboratório de física de partículas Cern, em Genebra, organizou uma conferência sobre gênero.

Perante uma audiência majoritariamente feminina, o físico italiano Alessandro Strumia apresentou argumentos —simplistas e defeituosos—  de que hoje há um viés contra os homens e a favor das mulheres na física. Um dos slides dizia “a física foi feita por homens [...] mulheres estão aqui somente por convite”.

É impossível mapear todas as motivações e influências que levaram Strickland a se contentar com o posto de professora assistente, mas é fácil ver os contornos da maré contra a qual tem que nadar.

A verdade é que Mileva ainda teria hoje seu quinhão de obstáculos, e que ainda temos muito chão a percorrer.

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