Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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O que um experimento com marshmallow revela sobre sucesso e fracasso

Novo estudo enfraquece hipótese que liga espera de recompensa a desempenho a longo prazo

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“Que comam brioches!”, teria gritado uma indignada Maria Antonieta ao ser informada de que faltava pão ao amontoado de gente em frente à sua casa —o palácio de Versalhes, no caso.

Na verdade, a frase pertence a um personagem de Jean-Jacques Rousseau —em uma das obras que inspiraram os revolucionários franceses— e foi escrita muitos anos antes da apócrifa exclamação de Antonieta. Mas a anedota já era útil antes da rainha e ainda é hoje; representa a dificuldade de internalizar a escassez que só acomete terceiros.

Essa dificuldade não se restringe a realezas fictícias. Nem mesmo psicólogos sociais —cujo trabalho é estudar a relação entre a psicologia e a sociologia, campos relevantes neste contexto— estão imunes a ela: um dos mais citados estudos da área, conhecido como “o teste do marshmallow”, acaba de cair em descrédito justamente por não levar em conta os efeitos psicológicos advindos da escassez.

marshmallows
Marshmallows - Divulgação

Nos anos 60, o recém-falecido psicólogo Walter Mischel, de Stanford, propôs o teste para avaliar o autocontrole de crianças. O experimento era simples: cada criança era colocada em um quarto, sozinha, com um marshmallow. Explicava-se a ela que, se aguentasse esperar um determinado tempo sem comer o doce, receberia dois como recompensa. Um marshmallow agora ou dois um pouco mais tarde.

O plano era correlacionar os resultados do experimento com diferentes medidas de sucesso profissional e pessoal ao longo do tempo: nível de escolaridade, obesidade, salário médio, encarceramento etc.

O resultado de Mischel, publicado após quase 30 anos de acompanhamento dos participantes, foi espetacular: a habilidade de controlar impulsos previa fielmente o futuro desempenho nos índices estudados. A maior capacidade de deferir gratificação significava melhores índices em todos os quesitos e maior chance de alcançar objetivos a longo prazo.

Talvez por se encaixar tão bem na ética protestante —que enfatiza disciplina e frugalidade—, o novo dogma foi rapidamente incorporado pela sociedade intelectual americana: o estudo entrou no currículo de psicologia social de grandes universidades; pais e educadores foram encorajados a “treinar” crianças a deferir recompensas; TED Talks urgiam o espectador a resistir ao doce e pelo menos uma escola nos EUA adotou “não coma o marshmallow!” como seu lema.

Até alguns meses atrás, o marshmallow era um dos instrumentos preferidos de psicólogos sociais. Hoje não estamos tão certos. Em um artigo publicado em maio passado pela revista Psychological Science, os pesquisadores Tyler Watts, da New York University, Greg Duncan e Haonan Quan, da Universidade da Califórnia, revisitaram o estudo de Mischel.

O original havia sido conduzido com somente 90 crianças, e a única variável medida foi o tempo de resistência aos charmes do marshmallow. O novo estudo teve participação de mais de 900 crianças e levava em conta outras variáveis, como o nível de escolaridade dos pais, renda familiar e capacidade cognitiva durante a primeira infância.

Desta forma, poderiam “controlar” os efeitos de uma variável pelo efeito de outra; por exemplo, comparando só os resultados daquelas crianças que vinham de famílias com renda similar.

Quando controlados por esses outros fatores, os pronunciados efeitos do estudo original praticamente desapareciam. Para tomar um exemplo, o novo estudo apontava que, entre os participantes cujas mães tinham escolaridade superior completa, aquele que esperou por um segundo marshmallow não teve (em média) melhor desempenho futuro do que um participante mais impaciente. O mesmo ocorreu no agrupamento sem escolaridade superior, uma vez que outros fatores, como renda familiar, eram usados como controles.

Em última análise, o novo estudo enfraqueceu a hipótese de que postergar a gratificação pode ser um atributo em si mesmo, a chave para melhores desempenhos. Ao contrário, o tempo esperado para comer o marshmallow parece ser função do ambiente familiar e contexto socioeconômico; portanto são essas outras variáveis, e não a habilidade de esperar por dois doces, que melhor preveem o desempenho futuro.

Hipóteses lançadas para explicar a relação causal entre deferimento de gratificação e contexto socioeconômico já existiam bem antes dos novos estudos: no livro “Scarcity: Why Having Too Little Means So Much”, de 2013, o economista de Harvard Sendhil Mullainathan e o cientista comportamental de Princeton Eldar Shafir descrevem como a escassez favorece opções de curto prazo ao invés de recompensas a longo prazo.

Trocando em miúdos, um segundo marshmallow pode ser irrelevante quando até o primeiro parece incerto. Para crianças de ambientes economicamente inseguros, a vida traz poucas garantias. Por que esperar uma recompensa que pode não vir?

Por outro lado, crianças oriundas de casas mais bem providas e de pais com maior escolaridade tipicamente têm maiores garantias de que promessas serão mantidas e de que suas necessidades serão atendidas.

Na pequena chance de o segundo marshmallow não se materializar, essas crianças têm confiança de que terão novas oportunidades na despensa de casa; podem se dar ao luxo da espera.

De uma forma mais sutil de que Maria Antonieta, hoje parece que os antigos testes do marshmallow também não internalizaram os possíveis efeitos da escassez. É provável que muitas crianças comam os primeiros marshmallows simplesmente porque não têm brioches esperando por elas em casa.

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