Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Seria tão ruim assim remar contra a nossa própria natureza?

Edição genética abre possibilidade de avaliarmos prós e contras de características naturais

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Em novembro de 2018, o cientista chinês He Jiankui chocou o mundo ao anunciar que havia criado bebês humanos geneticamente modificados. Parte do rebuliço que a história causou se deve ao primeiro uso de Crispr, uma nova técnica de manipulação genética, em bebês humanos.

A vantagem desta sobre outras tecnologias de edição de genes é enorme: ela é mais barata, de uso relativamente simples e muito mais precisa. É tão fácil de usar que, desde 2017, por US$ 130, é possível comprar um kit de Crispr online e brincar de trocar um par de genes de bactérias em casa.

O cientista chinês He Jiankui, que diz ter editado genes de bebês - Anthony Wallace/AFP

Dana Carroll, professor de bioquímica na Universidade de Utah, tem uma visão otimista sobre a popularização da tecnologia: “É possível que pessoas trabalhando de suas garagens ou cozinhas inventem uma nova aplicação ou solucionem um problema que profissionais simplesmente ainda não tiveram tempo de enfrentar.” 

É claro que com essa facilidade de uso, seja em um laboratório na China ou em uma garagem em outro lugar qualquer, a tecnologia será gradualmente aplicada em humanos. Como tantas outras tecnologias disruptivas, terá um começo humilde, ainda que controverso, na sociedade.

Doenças genéticas graves devem ser o primeiro alvo. Até esse ponto, o uso de Crispr deve ter pouca oposição —quem protestará frente à possibilidade concreta de eliminarmos a doença de Huntington, a fibrose cística, ou a distrofia muscular? Com o passar do tempo, avançaremos para as doenças menos graves. E depois, quem sabe, para ligeiras deficiências.

Uma infância com aplicações médicas urgentes deve ser subsidiada por governos, e a paucidade de investimento necessário para utilizar a tecnologia deve possibilitar um mercado competitivo em prol do consumidor. Esses dois fatores alentam os medos do catastrofista sobre a criação de uma elite super-humana exclusiva e de uma massa de reles Homo sapiens: em certa aproximação, o provável é que estejamos todos no mesmo barco.

Implícita ou explicitamente, em algum ponto estaremos decidindo o rumo genético da humanidade como um todo. Encontraremo-nos navegando nosso barco pelo vertiginoso oceano dos possíveis genótipos.

Visões de um mundo repleto de pessoas com asas e outros superpoderes são precoces, para dizer o mínimo. Para a maior parte das nossas características, a relação com genes —a relação entre genótipo e fenótipo— ainda é misteriosa.

São poucas as características que respondem a um único gene; cadeias inteiras deles interagem com outras cadeias e com seu ambiente químico antes de produzir o que vemos no espelho. Para se ter uma ideia da complexidade envolvida, ainda não decodificamos geneticamente nem mesmo alguns atributos hereditários simples, como a nossa altura.

Dito isso, há certos comportamentos extremamente suscetíveis a pequenas mudanças genéticas. Um exemplo relevante para um debate ético é ilustrado pela diferença entre o vole campestre (um roedor parecido com um rato), e seu primo próximo, o vole montanhês.

O campestre é monogâmico: encontra um par vitalício com o qual cria toda a sua prole. O montanhês é poligâmico: o macho deixa a fêmea assim que a fertiliza.

Há uma diferença genética simples entre os dois, e provavelmente relevante: o gene para receptores de um hormônio ligado à formação de vínculos afetivos tem um segmento mais longo no campestre do que no montanhês. Neste caso, há uma ligação clara entre genótipo e fenótipo, e até em relação a comportamento.

Apesar de influente, é claro que a ligação entre herança genética humana e comportamento é via de regra mais nebulosa do que este caso dos voles. Até Aristóteles, há mais de 2.000 anos, já dizia: “O homem é um ser social. [...] A sociedade precede o indivíduo”.

De fato, forças culturais esculpem a sociedade e nosso comportamento. Como argumenta o historiador Yuval Noah Harari, foram as histórias que contamos, as ficções que construímos, que deram ao Homo sapiens maestria sobre o seu ambiente e permitiram que construísse ferramentas como o Crispr.

Concordemos com Harari e Aristóteles: o vínculo entre nossa natureza individual e o rumo que tomaremos como sociedade é extremamente complicado por forças sociais e culturais. Mas não precisamos destrinchar as minúcias de todos os fatores causais para argumentar que nossas tendências naturais tornam certos comportamentos mais fáceis ou mais difíceis.

Nossa natureza não nos força a quase nada, mas sugere muita coisa. A relação entre comportamento e DNA lembra a relação entre o barco a vela e o vento: não precisamos sempre navegar na direção do vento, mas não é fácil navegar em direção oposta.

Admitir isso não significa que devemos alinhar o nosso barco com o vento genético —depende do lugar aonde queremos chegar. Por exemplo: humanos atingem a puberdade na adolescência, mas números altos de gravidez nessa idade são um mau sinal para índices de desenvolvimento humano. Neste e em muitos outros quesitos, as sociedades se esforçam para caminhar contra o vento.

Mas e se pudermos mudar a direção do vento em um futuro próximo? E se pudermos mudar nossas vontades e nossas intuições éticas? O filósofo alemão Arthur Schopenhauer, pessimista sobre a nossa capacidade de deliberar sobre nossas vontades individuais, escreveu: “Um homem pode fazer o que quer, mas não pode decidir o que querer”.

E se agora, como espécie, tivermos maior poder para decidir o que o indivíduo comum vai querer? Deveríamos fazer como os voles campestres e tentar mudar o vento em direção à monogamia vitalícia? E diminuir a nossa agressividade? E retardar a puberdade, é uma boa?

E se pudermos, ainda, mudar o grau de empatia que sentimos em relação a estranhos, deveríamos deixá-lo no mesmo nível daquele que sentimos por familiares próximos? Imagine: salvar seu filho ou uma criança qualquer na China, para você, igualmente importantes. A sociedade humana como um todo seria melhor nesses mundos?

Dada a interação complexa entre as tendências pessoais e a sociedade em larga escala, é fácil ser um conservador genético —melhor não mexer no que tem dado certo, o "time que está ganhando". Mas talvez esse time não esteja ganhando tanto quanto poderia. Ou talvez esteja prestes a perder feio.

Seja por aquecimento global, entrincheiramentos políticos ou outros entraves nas maiores democracias do planeta, muitos especialistas de diversas áreas temem pelo futuro da nossa sociedade. A verdade é que não há garantia nenhuma de que esse caminho —aquele que a relação sociogenética da humanidade inercialmente toma— será eternamente bem fadado.

A preferência pelo que já está aí é parente da “falácia do naturalismo”: mesmo que concordemos que algumas coisas sejam naturais e outras não, daí não segue nenhuma inferência de valor. Não há motivo para supormos que o que é natural é melhor e o que é artificial é pior. Assim como não precisamos alinhar nosso barco comportamental ao vento genético, não precisamos preservar o vento que nos é dado.

A conclusão é que os prós e contras de nossa natureza atual devem ser eventualmente colocados lado a lado dos prós e contras de possíveis naturezas sintéticas.

Precisamos decidir, o mais racionalmente possível, como navegar a humanidade. E precisamos fazê-lo sabendo que, nesse caso, navegar não é preciso. Mas é necessário. Mesmo que seja para decidir deixar esse vento nos levar.

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