Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Há cem anos, Brasil foi palco de descoberta sobre buracos negros

Equipe britânica fez medições importantes na cidade cearense de Sobral

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A maioria dos leitores deve ter visto, há cerca de um mês, as magníficas primeiras imagens de um buraco negro. Alguns devem saber mais detalhes, como o fato de que a obtenção dessas imagens só foi possível graças à união de esforços de cientistas do mundo inteiro —membros do consórcio internacional EHT (Event Horizon Telescope)— que sincronizaram seus telescópios exclusivamente para esse fim.

Para se ter uma ideia da dificuldade da empreitada: visto da Terra, o buraco negro no centro da galáxia M87, aparece com o mesmo tamanho de um grão de areia na praia de Arroio Chuí —ponto mais ao sul do Brasil— quando visto do monte Caburaí —o extremo norte do país.

A distância é o dobro daquela entre São Paulo e Recife. Para comparação, um dos maiores telescópios, o Hubble, que fica no espaço, só conseguiria discernir objetos do tamanho de uma melancia à mesma distância. Observar o buraco negro em M87 foi como ler este jornal em São Paulo através de um telescópio em Miami.

O que poucos leitores devem saber é o papel que o Brasil desempenhou nesta história. Não, infelizmente não participamos do EHT. Mas um dos mais importantes capítulos na epopeia dos buracos negros, há cem anos atrás, teve como palco uma cidade brasileira: Sobral, no Ceará.

eclipse
Eclipse solar de 1919, conforme observado em Sobral, no Ceará - Arthur Eddington

O cenário mundial do episódio, ocorrido na na primeira metade de 1919, era desolador. A Europa tentava se recuperar da devastação da Primeira Guerra. O clima entre Inglaterra e Alemanha era hostil, e a animosidade transbordava da política para outras áreas. Via de regra, cientistas de um lado do conflito se esforçavam para condenar ou ignorar a ciência do outro. Mas havia exceções.

Do lado alemão, o físico Albert Einstein, que havia menos de quatro anos tinha descoberto as equações que levam seu sobrenome. Do outro lado, o astrônomo inglês Arthur Eddington, que havia estudado o trabalho de Einstein e era um dos poucos ingleses que com ele se correspondia e compreendia sua importância.

Para a consternação de muitos colegas, o incansável Eddington almejava comprovar experimentalmente a teoria de Einstein —chamada de ‘relatividade geral’. O inglês tinha a nobre e ingênua esperança de reconciliar a comunidade científica europeia caso tivesse êxito em confirmar a teoria do alemão.

De acordo com a relatividade geral, o espaço e o tempo são como uma esponja que se curva, contorce e dilata em resposta à presença de matéria e energia. Planetas, asteroides, bolas de futebol, e até a luz, ao traçarem suas trajetórias no espaço-tempo sentem e respondem à topografia da esponja.

O desafio experimental que Eddington enfrentava é que a Terra comprime a esponja muito pouco, e os efeitos aqui são quase indiscerníveis daqueles provindos da teoria de Newton, cujo reino na astronomia era incontestado desde o século 17.

O astrônomo inglês precisava de algo mais maciço para testar a diferença entre as duas teorias. O sol era uma opção. De acordo com a teoria de Newton, ao passarem perto do Sol, raios de luz vindos de estrelas sofreriam metade do desvio gravitacional previsto por Einstein. Mas há um óbvio obstáculo: como separar a luz dessas estrelas da do Sol, objeto muito mais luminoso? A solução é simples: fazer as observações durante um eclipse, quando o Sol não ofusca as estrelas.

A verdade, inusitada, é que aquelas medições teriam sido bem mais fáceis se o Sol virasse um buraco negro. Diferentemente do que muitos pensam, se o sol se tornasse um buraco negro, não sugaria a Terra repentinamente, como um aspirador cósmico. Na realidade, a Terra permaneceria em sua mesma órbita.

A definição exata de um buraco negro ainda é matéria controversa, mas aqui basta dizer que é uma região do espaço-tempo deformada pela presença de matéria. A topografia da esponja ali é tão distorcida que nenhum tipo de foguete, nem a luz de uma lanterna apontada diretamente para cima, consegue escapar da região.

O nosso Sol tem cerca de 700 mil km de raio, mas formaria um pequeno buraco negro —cerca de três quilômetros de raio— que sugaria qualquer coisa que se aproximasse demais desta distância, inclusive luz.

Mas a partir de 700 mil km de distância, a depressão na esponja é a mesma; estrela ou buraco negro, ela só depende da massa total dentro desse raio, e a massa não muda muito quando uma estrela vira um buraco negro. Para qualquer coisa que mantivesse distância suficiente, como a Terra e os outros planetas, ou a luz que vemos das estrelas, as órbitas e trajetórias permaneceriam as mesmas.

O buraco negro em M87 é bem maior do que 3 km: ele é do tamanho do nosso Sistema Solar, mas funciona da mesma forma. Inclusive a silhueta que vemos na imagem divulgada pelo EHT não é a fronteira do buraco negro —chamada de “horizonte de eventos”. A silhueta vem do mesmo efeito —amplificado enormemente— que Eddington tentava observar: um desvio na trajetória esperada da luz.  

Perto do buraco negro o desvio é enorme. A certa distância do centro, o desvio é o suficiente para que a luz em si entre em órbita. Um pouco mais longe e a luz emitida por certas partículas —chamada de luz de synchroton— quase não escapa; ela orbita algumas vezes e finalmente atira em nossa direção.

Temos modelos matemáticos de como essa luz apareceria para diversos tipos de buracos negros. Estes modelos nos permitem reconhecer precisamente a rotação e massa deste que observamos agora, no centro da galáxia M87. O feito constitui a mais recente, e uma das mais espetaculares, previsões da teoria de Einstein, formulada em 1915.

De qualquer forma, em 1919, só quatro anos depois da formulação da relatividade geral, ninguém sabia direito o que era um buraco negro, e muito menos como observá-lo. Eddington então fez o que podia: organizou duas expedições, uma para Sobral, e outra para a ilha de Príncipe, na costa africana, para aproveitar o eclipse sobre o hemisfério Sul previsto para o dia 29 de maio.

Durante o eclipse, o sol passaria na frente de um amontado de estrelas chamado de Hyades, oferecendo plena oportunidade de comparar a trajetória da luz durante o dia e durante a noite, com e sem sol no caminho —teoricamente, com e sem desvio.

Mas, naquela quinta-feira, Sobral amanheceu nebulosa, coisa rara na região. Faltando um minuto para a totalidade do eclipse, as nuvens se abriram, e o time de Eddington fez suas medições, confirmando a teoria de Einstein e mudando a história do mundo.

O episódio logo completa cem anos, e merece celebração. Não por um ufanismo forçado —o governo e a ciência do país pouco fizeram pela expedição. Mas justo pelo contrário: pela demonstração de como a humanidade, através da ciência, pode perseguir objetivos maiores, que transgridem fronteiras e afiliações políticas.

Em tempos de aquecimento global, a lição é bem-vinda; investir em ciência é investir no projeto humano. O EHT, com sua orquestra científica milimetricamente conduzida ao redor do globo, ecoa e relembra aquilo demonstrado em Sobral, há exatos cem anos.

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