Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Henrique Gomes

Afinal, o tempo presente existe?

Nossa intuição é de que há um presente só, mas essa impressão está errada

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cá estamos no novo ano. Tempo de resoluções novas e renovadas, de muita esperança para o futuro e arrependimento pelo passado. Mas não esqueçamos o "agora": mais e mais ouvimos que devemos viver no presente, que é tudo que temos.

Qual presente? Este, em que o leitor termina de ler as primeiras frases dessa coluna? Ou este, novinho em folha? Todos temos a impressão de que os dois não podem coexistir; a nossa intuição é de que há um presente só e que ele percorre a nossa história dando vida a momento após momento.

Porém, contrariando nossa intuição, essa impressão está errada: todos os momentos, todos os "agoras" têm uma vida atemporal, todos existem no mesmo pé.

A conclusão acima é antiga e pode ser argumentada pelo ângulo filosófico e pelo físico. A base do argumento filosófico é bem geral. Pois imagine que cada momento da nossa vida até agora seja como um quadro de filme. A nossa intuição é que algo como um projetor ilumina um quadro por vez: o presente.

Mas imaginemos também que em alguns destes quadros estejamos nos fazendo a pergunta: “Estou no presente?”. A resposta é sempre "sim, estou no presente". Cada sujeito destes quadros se sente como o único real; cada um olha ao seu redor e se sente especial. Por que haveria um preferido?

einstein
O físico alemão Albert Einstein (1879-1961), cuja teoria da relatividade redefiniu a compreensão do espaço-tempo - Reprodução

Simplesmente não existe uma visão de fora do filme; algo que distinga os quadros mesmo que eles mesmos não consigam se distinguir. Não há algo correspondente a uma luz do projetor que diga “esse quadro, e não aquele, é o verdadeiro.”

Tampouco na física —de Newton a Einstein— há sinal de que algum presente "por vez" (seja lá o que “por vez” queira dizer) seja preferido. E a evolução científica não tem ajudado.

Pelo menos na teoria de Newton, dado algum evento X —digamos, os primeiros fogos de artifício no Rio de Janeiro, comemorando a virada para 2020—, podemos definir todos os eventos simultâneos a X, atravessando o Universo. Segundo Newton, o espaço e o tempo são noções absolutas.

A teoria da relatividade de Einstein tem mais dificuldade em articular a noção de um agora privilegiado fluindo para o futuro do que a teoria newtoniana. Na relatividade não há uma noção objetiva de eventos simultâneos. Segundo a teoria, a simultaneidade é um conceito relativo, isto é, um conceito dependente de nosso estado de movimento. Um evento pode ser simultâneo a outro para você, mas, se eu passar correndo pela sua posição, não serão simultâneos para mim.

Imagine então que definimos todos os eventos simultâneos aos primeiros fogos de 2020 no Rio (que havíamos denominado evento X). Tomemos Y, um evento em uma galáxia distante —digamos o soar de um relógio— que julgamos ocorrer exatamente ao mesmo tempo que X.

O problema agora fica claro, pois há uma outra noção de simultaneidade, perfeitamente legítima para algum habitante de Andrômeda, segundo a qual Y —o soar do relógio— é simultâneo aos fogos de artifício comemorando a passagem de 2020-2021, no Rio de Janeiro!

Isso é problemático porque imaginamos a simultaneidade como propriedade transitiva: se o fogo de artifício estourou ao soar do relógio, e o copo quebrou também ao soar do relógio, concluímos que o estouro foi simultâneo à quebra do copo. Mas aí, segundo a construção acima, os fogos comemorando os novos anos de 2020 e 2021 são simultâneos! De fato, seguindo estes procedimentos, podemos dizer que todos os eventos do Universo são simultâneos!

Ou seja, noções tão abrangentes de simultaneidade são triviais: não distinguem nenhum evento de nenhum outro.

Por que nossa intuição está tão mais alinhada com a teoria newtoniana, para a qual eventos em Andrômeda são absolutamente simultâneos a eventos aqui na Terra? Nós, habitantes da Terra, temos essa ilusão porque estamos relativamente próximos uns dos outros, e em velocidades relativas baixas. Conseguimos compartilhar "agoras" que, se não completamente objetivos, são pelo menos intersubjetivos.

Essa noção intersubjetiva de simultaneidade é bem humilde, mas é tudo que temos. O resultado é inevitável: racionalmente, temos que pensar em eventos passados e futuros como ainda/já existindo, democraticamente com eventos presentes; estão todos no mesmo pé.

O espaço-tempo é como um grande bloco de mármore posto fora do tempo. Cada "agora" ocupa uma pequena região neste bloco, mas estão incrustados no lugar: da perspectiva do bloco, nada muda, nada entra em existência e nada sai.

“O mundo objetivo simplesmente é, ele não acontece.”—escreve o matemático alemão Hermann Weyl, em um agora de 1949. O próprio Einstein, em 1955, consola a viúva de seu grande amigo Michele Besso com as seguintes palavras: “Para nós, que acreditamos em física, a diferença entre o passado, o presente e o futuro é só uma ilusão, mesmo que teimosa.”

Ele tenta assim transmitir o lado positivo desta nova intuição: seus falecidos entes queridos ainda existem. Aqueles momentos em que riam juntos são tão reais, tão vivos quanto outros "agoras", onde sofrem sozinhos. Nossos momentos felizes de 2019 ainda estão lá, e os de 2020 já estão lá: o ano novo já é ano velho, e o ano velho ainda é ano novo.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.