Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Trocar o pânico por ciência frente aos riscos do coronavírus

É importante reafirmar nossa confiança no processo científico e nos seus órgãos reguladores

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O CoVid-19 logo será responsável por 4.000 mortes ao redor do mundo. O vírus, denominado Sars-Cov-2, que leva à doença conhecida como CoVid-19, foi pela primeira vez transmitido a humanos na província de Wuhan, na China, em dezembro de 2019, e desde então tem se espalhado por todos os continentes. Frente a esses novos desafios, é importante reafirmar nossa confiança no processo científico e nos seus órgãos reguladores.

A pesquisa epidemiológica já trouxe imensos frutos para a humanidade. Quando a última grande epidemia assolou o globo, a gripe espanhola de 1918, não tínhamos ideia de onde vinha ou como tratá-la.

Recomendações de tratamento incluíam sangramento, champanhe e laxativos. O próprio nome oficial da gripe, influenza, vem de uma das muitas propostas para a origem da doença: seria a influência de um desalinhamento dos planetas. Hoje esse tipo de causa e tratamentos nos parecem piada.

Hoje sabemos que o sistema imunológico humano, após centenas de milhares de anos de evolução natural, constitui ótima defesa para um vírus nativo do Homo sapiens, e que muitos dos patógenos perigosos para nós têm sua origem em algum animal e só depois cruzam a barreira interespécies.

Exemplos incluem HIV (chimpanzés), ebola (morcegos), SARS (civetas) e influenza (porcos ou aves). O próprio CoviD-19 provavelmente usou algum intermediário (morcegos) para chegar até nós.

E é graças a este conhecimento científico sobre patógenos que a China (finalmente) proibiu o consumo de animais selvagens, a partir de fevereiro deste ano. A ação deve restringir ambientes propícios à incubação de doenças perigosas como o CoVid no futuro.

É também graças ao conhecimento científico que temos protocolos de isolamento e de higienização efetivos contra a propagação do vírus; que temos antibióticos usados para tratar com sucesso, não a infecção viral em si, mas os seus efeitos secundários; e que temos até alguns antivirais (cuja eficácia ainda é variável, mas deve melhorar bastante com novas pesquisas).

Duas semanas após o surgimento do CoVid-19, já havíamos identificado seu material genético e começado o processo que levará a sua vacina. Agora, em março, já conhecemos os mecanismos que o vírus usa para entrar nas células hospedeiras, e um grupo de pesquisa alemão recentemente encontrou uma droga, já disponível no mercado (Camostate Mesilate), que pode proteger contra o CoVid-19.

Em termos de ciências médicas, podemos dizer que estamos mais longe de 1918 do que eles estavam da peste bubônica na Idade Média.

Mas antes de convidarmos para uma perspectiva demasiadamente otimista para o futuro, é importante lembrar que todos estes avanços vieram sempre acompanhados por uma sombra de risco. Na verdade, toda ação vem acompanhada de risco.

Quando você abre um iogurte, há um pequeno risco de que as culturas vivas ali tenham sofrido mutações e que causem uma epidemia que acaba por eliminar a humanidade. Mesmo assim, o risco é tão pequeno que o benefício que você tem ao comer o iogurte facilmente vence a contenda.

Por outro lado, toda vez que negamos uma pesquisa, ou cedemos a algum risco, temos de arcar com a possível ausência de um benefício; “o risco invisível de dizer não”, como dizia o recém-falecido físico Freeman Dyson.

A questão, obviamente, não é eliminarmos o risco, isso é impossível, e sim o compararmos relativamente a algum benefício.

Para tomar um exemplo recente em pesquisa epidemiológica: em 2012, um virólogo holandês, Ron Fouchier, publicou detalhes de um experimento com o recém-descoberto H5N1, vírus da gripe aviária. A variedade estudada por Rouchier era extremamente letal: matava 60% dos humanos infectados, superando até a temível influenza.

Ainda assim, o vírus era intransmissível de humano para humano e, portanto, não apresentava risco de epidemia. As intenções de Fouchier eram louváveis: queria descobrir se o vírus poderia vir a se tornar transmissível através de seleção natural.

Ao final do experimento, Fouchier havia descoberto uma estirpe do vírus diretamente transmissível entre mamíferos. A agência de biossegurança americana censurou o artigo, excluindo alguns detalhes técnicos da publicação; havia perigo de que a pesquisa caísse em mãos erradas. Julgaram, corretamente em minha opinião, que ali o risco não justificava o ganho.

E foi assim, negociando o risco e o ganho passo a passo, que a ciência nos levou da peste bubônica até CoVid-19, de sangramentos e champanhe até antivirais.

No entanto, cada caso é um caso, e o futuro ainda não está escrito. Se o CoVid-19 fosse muito mais mortífero do que é, seria racional suspendermos protocolos de segurança para acelerar a aprovação de vacinas? E como devemos negociar o risco de contaminação contra o risco de um colapso financeiro na sociedade?

Esse tipo de questão não se limita à epidemiologia. É fácil encontrar pelo menos dois exemplos ilustrativos em outras áreas: a pesquisa de transgênicos e energia nuclear. São áreas que potencialmente também trazem benefícios incalculáveis, mas que envolvem algum risco. Mais importante, são áreas nas quais a falta de entendimento popular da relação custo-benefício claramente colocou pressão política infundada e deletéria.

Com o aumento da notoriedade do CoVid-19, e o maior número de opiniões mal-informadas, é imperativo evitar que esse tipo de pressão se alastre também para a epidemiologia. Não digo aqui que há respostas pré-fabricadas para diferentes áreas e diferentes contextos, mas sim riscos calculados, feitos depois de uma análise detalhada e informada.

E para isso já existem ótimos órgãos, como o WHO (World Health Organization) e o CDC (Center for Disease Control), cujo trabalho é negociar os riscos e os benefícios epidemiológicos, em diferentes situações.

Como o caso de Fouchier ilustra, temos todo motivo para confiar na seriedade destes órgãos quando se trata da saúde mundial. Nos cabe, então, entregar-lhes nossa confiança. A alternativa seria seguirmos nossa própria aversão ao perigo de forma absoluta, criando pânico e acovardamento onde estes não têm lugar. Nos cabe, enfim, ouvir a ciência, pois foi ela que nos trouxe até aqui.

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