Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Descrição de chapéu Coronavírus

Cientistas têm de ser honestos sobre as incertezas da pandemia

É sempre possível que a teoria de hoje não sobreviva aos testes de amanhã, mas ainda assim é a melhor que temos

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A ciência tem recebido críticas mistas por sua performance durante a pandemia. Apesar de estudos importantes sobre o funcionamento do vírus Sars-Cov2 e do desenvolvimento de várias possíveis vacinas, como um todo a ciência ainda titubeia para distinguir o risco de diferentes intervenções. Precisamos usar máscara ou não, OMS? E as escolas podem abrir? Antes ou depois dos bares? E por aí vai.

Quando cientistas finalmente, tentativamente, oferecem respostas, elas são pontuadas de incertezas e condicionais. Acontece que, na visão popular, prover certezas faz parte dos ossos do ofício do cientista, e, sem o devido entendimento do papel da ciência, esse titubear pode ser interpretado como um fracasso do processo científico.

Há aqui uma divergência entre o que a ciência de fato promete e as expectativas de um público leigo, mas é a expectativa que é inapropriada. A ciência não promete certezas, pois não é oráculo: não fazemos perguntas à mãe natureza e esperamos as respostas certas, válidas para todo o sempre. Muito pelo contrário, até conclusões rigorosamente científicas são falíveis.

Nada ilustra melhor a falibilidade da ciência que um exemplo na física —a rainha das ciências—, em que um certo paradigma sobre a natureza da gravidade e do espaço-tempo reinou supremo por mais de dois séculos, só sendo suplantado no começo do século 20. Refiro-me, é claro, à teoria de Newton e à sua sucessora teoria da relatividade. A certeza no paradigma newtoniano era tanta que grandes filósofos argumentavam que nem Deus poderia ter escolhido outras leis do Universo.

A revolucionária transição de Newton para Einstein foi ao mesmo tempo triunfo e lição de humildade. Dos escombros da revolução emergiram concepções modernas de ciência, mais confortáveis com a incerteza. Uma das mais famosas entre essas novas concepções —e a única que discutirei aqui— é o falibilismo associado ao filósofo austríaco Karl Popper.

Segundo Popper, a certeza não pode ser o marco da boa ciência, porque nunca se sabe se o que era certo ontem deixará de sê-lo amanhã. Para o filósofo, a ciência é um método, um processo. Todas as nossas teorias são conjecturas, e o trabalho do cientista não é tentar confirmá-las para todo o sempre —uma tarefa impossível—, e sim desconfirmá-las.

O cientista deve se esforçar ao máximo para não enganar a si próprio, e o único modo de fazer isso é tentar encontrar buracos na sua própria teoria. As teorias que temos hoje são as raríssimas sobreviventes de um processo evolutivo rigoroso, rubro em dente e garra. É sempre possível que a teoria de hoje não sobreviva aos testes de amanhã, mas ainda assim é a melhor que temos.

Coerentemente, o falibilista acredita que o consenso atual não é “a verdade”, e sim só o mais perto que conseguimos chegar da verdade até agora.

Uma visão científica moderna —popperiana ou não— deve reconhecer as incertezas do processo e até mesmo a possibilidade de mudanças radicais de consenso, como por exemplo os benefícios de usar ou deixar de usar uma máscara em uma pandemia.

O trabalho de um cientista requer um desapego aos seus modelos; ele ou ela não deve ter nenhuma vergonha em mudar de opinião frente a novas evidências. E o mais importante de tudo: essa humildade epistêmica, sugerida por Popper e adotada pela comunidade científica como um todo, não deve ser secreta, pois falhar em comunicá-la terá, inevitavelmente, efeito corrosivo na confiança pública na ciência.

E aqui cabe um mea-culpa em prol dos cientistas: acredito que nesta pandemia, motivados por uma atitude paternalista deslocada de nossa função na sociedade, fomos nós que falhamos em comunicar essas incertezas para o público.

Falhamos toda vez que nos atemos a um lado de um debate independentemente de evidências; falhamos quando não retratamos publicamente projeções epidemiológicas grossamente fracassadas e explicamos como corrigiremos nossos modelos; falhamos quando mudamos de opinião sorrateiramente; falhamos quando vetamos trabalhos científicos rigorosos porque não cabem na narrativa que queremos propagar.

Nós, cientistas, precisamos reaprender as lições de Popper: a ciência não é infalível e não há nada de errado com isso. Não há problema nenhum em deixar de recomendar Y e passar a recomendar X frente a novas evidências. Tratemos o público como adultos.

E, do outro lado, o público precisa recalibrar suas expectativas. A alternativa —não tenha dúvidas— é o afrouxamento da confiança mútua e um futuro escuro para a humanidade.

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