Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Henrique Gomes

Fatos, convenções e supremacia branca na conta de 2+2

Questão aritmética provocou debate entre ativistas civis e os incomodados com possíveis exageros do politicamente correto

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Uma controvérsia interessante movimentou o Twitter no mês passado: 2+2 é igual a 5 ou a 4? A questão surgiu em um debate entre ativistas civis e aqueles incomodados com possíveis exageros do politicamente correto. Eu não sou capacitado para dissecar os aspectos sociológicos da disputa. Meu interesse é nos filosóficos, pois a questão encontra um paralelo em um tradicional debate na filosofia.

Antes de entrar nos detalhes, convém prover um pouco mais de contexto. Tudo começou quando o escritor James Lindsay publicou um meme dizendo: “2+2=4: uma perspectiva da matemática branca e ocidental, que marginaliza outros valores.”

Era ma paródia, baseada no livro "1984", de George Orwell. Aparentemente, a intenção de Lindsay era enaltecer os avanços de conhecimento do iluminismo (majoritariamente Europeu) e criticar a distorção de fatos e conclusões científicas que não se encaixam nas molduras do politicamente correto.

Logo veio a retaliação. A jornalista americana e ativista civil Nikole Sheri Hannah-Jones respondeu: "Eu me pergunto se as pessoas sempre falando sobre 'padrões' alguma vez param para considerar que são os seus chamados padrões que são o problema real. Usando algarismos arábicos para tentar fazer uma afirmação sobre a superioridade ocidental branca é clássica".

Daí em diante a gritaria começou. De um lado, muitos diziam algo na linha de “2+2=4 é cultural, e só por conta do imperialismo ocidental acreditaríamos ser a única forma de conhecer”. Do outro, clamavam que os “ativistas buscam uma reescrita radical de todo o projeto racional, e qualquer razão que não encaminhe seus atores preferidos como os únicos árbitros do que é verdadeiro e correto precisa ser desconstruída por truques retóricos, marginalizada pela moral e, talvez, pela força física e intimidação".

Primeiro, vamos tirar uma coisa do caminho: existem sistemas algébricos cujas definições resultariam em 2+2=5. Para dar um exemplo um pouco diferente, mas mais familiar, 1+1=10 no sistema binário. Basta um pouco de esforço para achar uma definição dos símbolos que alcance o resultado almejado. Mas qual parte destas equações é verdade por convenção e qual parte é verdade por natureza?

'Convencionalismo' denota a concepção de que verdades necessárias, distintas das verdades contingentes ordinárias, funcionam como definições ou regras de linguagem e, portanto, estão ancoradas em convenções ao invés de fatos.

Exemplos de verdades convencionais seriam as asserções: “os solteiros são os não casados”, e “ou é dia ou não é”, que, à primeira vista, parecem ser verdadeiras só em virtude do significado das suas palavras, e não refletem fatos interessantes sobre como o mundo é.

Podemos identificar o extremo de um lado do debate acima, do lado do cinco, como defendendo que todas as verdades são convencionais, e que herdamos as nossas convenções de um patriarcado ocidental. O lado do 2+2=4 defenderia que verdades factuais são discerníveis das verdades por convenção, e, por mais que mudemos as convenções, os fatos são irredutíveis.

Não quero atribuir visões extremas a ninguém; só me servem para completar meu argumento. Pois há uma corrente na filosofia que julga que a própria distinção entre o convencional e o factual é impossível.

Para tomar o nosso exemplo acima, imagine que um dia descobríssemos uma falha no sistema jurídico que anulasse todas as certidões de casamento do último ano. Acreditaríamos ainda que todos os casados não são solteiros? Isto é, continuaríamos aceitando que essa é uma verdade independente dos fatos?

De acordo com Willard Quine, um dos mais influentes filósofos americanos do século passado, este tipo de raciocínio leva à conclusão de que a diferença entre verdades convencionais e factuais é uma diferença de grau e não uma diferença de tipo.

Quine via todas as declarações que fazemos como tendo um lugar no que ele chamava de "teia de crenças": "A totalidade dos nossos chamados conhecimentos ou crenças, desde as questões mais casuais da geografia e história até as leis mais profundas da física atômica ou mesmo da matemática e lógica puras, é um tecido feito pelo homem que colide com a experiência apenas nas bordas".

Segundo Quine, frente à novas experiências que não se adequam a teia atual, a adaptamos da forma mais pragmática e conservadora possível, isto é: próximo das bordas. Por exemplo, preferimos chamar a oclusão do Sol pela Lua de ‘eclipse lunar’, e não mudar a definição do que é ‘dia’ e ‘não dia’.

No contra-exemplo imaginado acima, provavelmente continuaríamos chamando os solteiros de não casados, mas abriríamos um parêntese para o último ano. As regras da lógica e aritmética estariam ainda mais centrais neste tecido do que o conceito de ‘solteiro’, e, portanto, ainda mais protegidas de mudanças.

Armados com esses conceitos, voltemos à inspiração do Tweet de Lindsay: o livro "1984" de Wells. Ao escrever seu diário secreto, o protagonista, Winston Smith, pondera se o Partido Interno poderia declarar que "dois mais dois é igual a cinco" é um fato. Smith pondera ainda se a crença em tal realidade consensual tornaria a mentira uma verdade.

Neste exemplo de aritmética elementar, que está bem central em nossa teia de crenças, a resposta é provavelmente não: o partido não conseguiria subverter a aritmética mantendo qualquer sucesso da teia de explicar o mundo. Portanto, para dizer que 2+2=5, mesmo o todo-poderoso partido teria que antes alertar para um uso bem incomum dos símbolos envolvidos.

Discordo, então, de Hannah-Jones: neste e em muitos outros casos, os padrões não são o problema real. Na maioria das vezes, fixamos um significado das palavras e exploramos o mundo, mantendo este significado relativamente rígido. Não mudamos os significados como bem entendemos porque precisamos manter o sucesso da nossa teia de crenças em explicar o mundo.

Mas isso não quer dizer que, ao longo da história, não reavaliamos o significado (e o uso) de palavras e conceitos mais na beirada desta teia. Então, a analogia de Lindsay entre 2+2=5 e outras asserções, digamos, das ciências sociais, é falha. Há muitos valores ocidentais, pouco centrais à teia do conhecimento, que podem e devem mudar.

Para concluir, empresto mais uma vez o lirismo de Quine: “A tradição de nossos pais é um tecido de frases. ... É uma tradição cinzenta clara: preta com fato e branca com convenção. Mas não encontrei razões substanciais para concluir que haja fios totalmente pretos ou totalmente brancos”.

Eu completaria: Ainda assim, nada nos impede de reavaliar aquilo que é branco como convenção.

LINK PRESENTE: Gostou desta coluna? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.