Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Não podemos ter uma ciência para conservadores e outra para liberais

Cientistas precisam deixar julgamentos pessoais e prismas políticos de lado para informar todos

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Quando finalmente a vitória do Biden se concretizou, suspirei aliviado. Pessoalmente, considero Trump, Bolsonoro, Erdogan e companhia manchas na história da democracia. Acredito ainda que Trump e Bolsonaro requerem a união de todos os defensores da democracia, dentro e fora da academia, uma união transcendendo crenças políticas.

Mas esta não é uma coluna de política. Venho dizer aqui que nós, cientistas, especialmente os envolvidos na área de saúde —aréa distante da minha, mas que está sob os holofotes do mundo inteiro— ainda podemos fazer muito para fortalecer a confiança do público geral.

Digo isso porque entendo a preocupação de tantos outros defensores da democracia com uma possível polarização midiática e acadêmica. Digo isso porque acho que não há nada mais importante no mundo atual do que manter uma relação saudável entre a ciência e o público geral, e não só com aqueles que se encontram do nosso lado do espectro político.

Teste de amostra de RNA do novo coronavírus em laboratório na Suécia - Jonathan Nackstrand - 6.nov.20/AFP

Um exemplo do que não fazer foi a resposta de boa parte dos profissionais de saúde —pelo menos os mais acadêmicos— às massas que foram às ruas para celebrar a vitória de Biden. O que se via no Twtitter e nos maiores jornais do mundo foi, no máximo, uma recomendação tépida, pedindo distanciamento e uso de máscaras.

Quando o assunto era outro —protestos contra o "lockdown", festas de adolescentes ou seja lá a ocasião não sancionada pelo nosso lado do espectro político— as mensagens tiveram outro tom: pediam sanções e multas e previam catastrófes.

Esse tipo de discrepância ajuda a tirar a legitimidade do cientista frente àqueles do outro lado do espectro político. Nesse tempo de fake news e polarização política, ajuda a fragmentar e desvalidar a ciência, em uma época em que ela é mais necessária do que nunca.

O trabalho do cientista e do acadêmico é difícil, pois tem o lado público e o lado pessoal. No primeiro papel cabe ao cientista informar ao público os fatos e suas consequências. Deve tentar deixar julgamentos pessoais e prismas políticos na porta da frente, pois não lhe cabe decidir o que fazer, e sim listar os prós e contras de cada curso de ação.

Contudo, o lado pessoal torna isso muito mais difícil do que parece. Se o cientista chegar a alguma conclusão que vá de encontro ao que seus colegas e círculos sociais defendem, sofre rejeição de cunho pessoal. Por outro lado, se suas conclusões se alinham com o zeitgeist prevalente em seus círculos, recebe carinho e reconhecimento.

Outro obstáculo à neutralidade é que ciência não se faz em um vácuo histórico: estamos imersos nas descobertas e narrativas dos nossos antepassados, em maior ou menor grau.

Dito isso, precisamos nos esforçar mais. Precisamos nos esforçar para que a mesma ciência (em linhas gerais) informe todos. Não podemos ter uma ciência para os conservadores e outra para os liberais. O cientista precisa suprimir o seu lado pessoal e levantar o do serviço público.

O que deve mover o cientista não é aquela sensação morna que temos ao torcer pelo mesmo time, e sim a sensação sóbria de servir a um bem maior. Nietzsche resume bem o problema: "As convicções são inimigas mais perigosas da verdade do que as mentiras". Lembre-mo-nos, cientistas, que também somos humanos, demasiado humanos.

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