Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Invasão do Capitólio mostra como teorias da conspiração podem ameaçar a democracia

Relatos pessoais são mais convincentes que estatísticas, mas causas de eventos 'sinistros' costumam ser mundanas

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Eu tinha planos de descrever uma nova teoria sobre o Universo na coluna desta semana, mas o Universo conspirou para que eu escrevesse, novamente, sobre teorias de conspiração.

Pois nestes dias, embasbacados, de queixos caídos e olhos esbugalhados, tivemos um aperitivo de como teorias de conspiração podem ameaçar a democracia. Na quarta-feira passada, aderentes de algumas dessas teorias tomaram conta do Capitólio de Washington, epicentro da mais antiga democracia ainda viva.

Tenho certeza que todos os jornais do mundo terão análises bem-informadas do ocorrido, e seria tolo tentar adicionar minha voz, relativamente ignorante nessa área, ao coro. Porém, o que poucos dirão, estou certo, é que é a falta de noções estatísticas que em grande parte alimenta as teorias de conspiração.

Não é surpresa que o cidadão comum tenha pouca intuição para estatística, pelo menos quando precisa tratar de grandes números de ocorrências. Biologicamente, o nosso aparato cognitivo se desenvolveu quando só tínhamos contato com um punhado de gente: fulano, sicrano e suas tias. O nosso universo se resumia a pequenas aldeias e a poucos eventos notáveis.

Nosso provincialismo ancestral nos legou diversas dissonâncias cognitivas ao tratar do mundo moderno, onde temos contato direto ou indireto com praticamente toda a população mundial e acesso a todas as notícias do globo.

Um destes legados malditos é que relatos e histórias pessoais são mais convincentes que números e estatísticas. Por exemplo, em uma série clássica de estudos, psicólogos perguntaram a um grupo de participantes quanto dinheiro eles dariam para ajudar a desenvolver uma droga que salvaria a vida de uma criança e perguntaram a outro quanto eles dariam para salvar oito crianças.

As pessoas dariam aproximadamente o mesmo em ambos os casos, mas quando um terceiro grupo de participantes soube o nome da criança e viu sua foto, as doações dispararam —agora havia doações maiores para um do que para oito.

Isso configura uma situação perversa em que o sofrimento de um pode ser mais importante que o sofrimento de mil. Ou, ainda, para a tese da coluna, que um caso personalizado fica mais importante do que milhares de abstratos.

Outro legado maldito é a nossa estupefação frente a fatos pouco prováveis. Na aldeia, fatos aparentemente improváveis —um raio caindo na cabeça do sicrano, por exemplo— eram imediatamente imbuídos de agência: foi o espírito do raio.

A nossa interpretação de acidentes era animista, e o nosso ambiente —animado e inanimado— era povoado de intenções e vontades. Não havia muito espaço para dizer: "Não sei exatamente por que o raio matou o sicrano ou sei lá o que fez a pedra cair no pé do fulano".

A atitude animista e a importância da narrativa pessoal são o combustível e o catalisador de qualquer teoria da conspiração bem-sucedida. O animismo deixa pouco espaço para acidentes e lê tudo como fruto de ações premeditadas; a narrativa pessoal nos coage emocionalmente a sobrepujar dados e estatísticas. No mundo atual, onde tudo é registrado por todos, a combinação é fatal.

Eventos esquisitos e suspeitos serão registrados e narrados em primeira pessoa, e podemos não ter uma explicação convincente em mãos. Esse vácuo explanatório é vulnerável e pode ser logo enviesado, interpretado e finalmente habitado pela teoria da conspiração do momento.

“Ah, a sua máquina de votar falhou quando foi votar no Trump, a caneta para assinalar a sua cédula teve que ser trocada e o atendente desapareceu por alguns minutos?" A partir desse ponto, a atitude animista toma as rédeas e leva a crer que se você não consegue imaginar uma causa para esses acidentes, houve intenção e agência.

A falta de noção estatística leva a crer que se aconteceu com você, deve ter acontecido com outros. A conclusão é praticamente inevitável: “Há uma conspiração entre todos os níveis do governo contra o Trump, claro”. E, finalmente, o apelo emotivo da narrativa pessoal leva milhões de pessoas a acreditarem mais no seu video do YouTube que nos dados apresentados pelos órgãos de governo.

Há uma série de furos na interpretação conspiratória, obviamente. O primeiro é simplesmente que o mundo é grande e há um grande número de eventos que parecem improváveis à primeira vista, mas que certamente ocorrerão. Uma ocorrência improvável em uma aldeia de cem pessoas pode ser quase certa em uma de 100 milhões, mas a nossa intuição não acompanha esse salto.

Pensando um pouco, não é porque aconteceu com você que deve estar pipocando por aí, afinal por que não dizer o mesmo sobre quem ganha a loteria? O que os crentes na teoria conspiratória também não admitem é que para cada um desses eventos “sinistros” há um universo infinito, insondável, de causas alternativas inocentes. A probabilidade é enorme de que desse conjunto infinito saia alguma explicação plausível.

Para ilustrar esse potencial explanatório das causas inocentes mas inconcebidas, tomemos o famoso caso do “umbrella man”, elemento-chave de uma das maiores teorias da conspiração da história.

O presidente John F. Kennedy foi assassinado em uma tarde ensolarada de 1963, quando não havia nenhuma previsão de chuva. No entanto, uma única pessoa carregava um guarda-chuva, e quando a limusine de Kennedy se aproximou de onde esse homem estava, ele abriu e ergueu seu guarda-chuva bem acima de sua cabeça, girando enquanto o presidente passava por ele. Os tiros vieram logo depois.

Após o assassinato, o homem do guarda-chuva sentou-se na calçada ao lado de outro homem antes de se levantar e caminhar em direção ao Texas School Book Depository, de onde Lee Harvey Oswald havia atirado no presidente. Como não tentar preencher este vácuo explanatório com alguma teoria que envolva o homem do guarda-chuva em uma conspiração para matar o presidente?

A causa real, descobriu-se mais tarde, era muito mais mundana e impossível de advinhar. Depois de um apelo público pelo Comitê de Assassinatos da Câmara dos Estados Unidos, Louie Steven Witt se apresentou em 1978 e afirmou ser o homem do guarda-chuva. Ele alegou ainda ter o guarda-chuva e não sabia que havia sido objeto de polêmica.

Ele trouxe o guarda-chuva em protesto contra JFK, cujo pai, Joseph, havia apoiado o primeiro-ministro britânico Neville Chamberlain a apaziguar os nazistas. Ao acenar com um guarda-chuva preto, o acessório registrado de Chamberlain, Witt disse protestar contra a família Kennedy por esse apaziguamento.

Guarda-chuvas pretos tinham sido usados em desenhos animados na década de 1930 com esse simbolismo e até em protestos contra o presidente. Por exemplo, na época da construção do Muro de Berlim, um grupo de alunos de Bonn enviou à Casa Branca um guarda-chuva com o rótulo Chamberlain.

Tudo isto torna o relato extremamente plausível. Na verdade, é provável que Kennedy, que escreveu uma tese sobre apaziguamento enquanto estava em Harvard, tenha até reconhecido o simbolismo do guarda-chuva.

A teoria da conspiração por trás do assassinato do Kennedy parecia plausível e precisou de muito menos contorcionismo para fazer sentido do que essas recentes teorias de fraude das eleições americanas. Ainda assim, uma vez que as reais causas se tornaram aparentes, ela deixou de ser levada a sério.

Aderentes de teorias de conspiração deveriam sempre manter este exemplo em mente: se imaginar naqueles dias entre 1963 e 1978 e internalizar como a interpretação conspiratória pode ser enganosa.

No entanto, o mundo de hoje é outro. Fora o momento político e a nova dinâmica das mídias sociais, todos carregam uma câmera no bolso; qualquer anomalia pode ser registrada e explorada como descrevi acima. Precisamos urgentemente desinvestir casos individuais e testemunhas oculares de significado, porque, no mundo conectado e monitorado de hoje, eles não significam quase nada. Tudo pode acontecer uma ou duas vezes, e as explicações podem ser mais esquisitas ou mais mundanas do que podemos supor.

Um video no Youtube pode servir para ilustrar dados estatísticos, mas não pode substituí-los. No caso americano, a lição é válida tanto para um video de uma pessoa negra sendo morta pela polícia quanto para aquele que mostra uma máquina eleitoral mudando um voto de Trump para Biden.

Infelizmente, a ameaça à democracia não respeita fronteiras: ou nos alfabetizamos estatisticamente ou o ataque da semana passada terá realmente sido só um aperitivo —e o prato principal pode sair à brasileira.

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