Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

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Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia

Modelos apontam que inverno nuclear mataria bilhões de fome

Cenário de destruição mútua, com guerra entre EUA e Rússia, mostra que não há vencedores com escalada nuclear

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Na minha última coluna, eu avancei uma especulação: a chance da civilização humana se autodestruir é maior do que imaginamos e a situação na Ucrânia nos apresenta com a mais nova oportunidade. Há vários possíveis cenários em que a Otan entra em um conflito direto com a Rússia, aumentando exponencialmente o risco de uma hecatombe nuclear.

Por exemplo, se a Ucrânia usar um míssil Harpoon (fornecido pelo Reino Unido) para afundar um dos navios Russos ao redor de Odessa, o Kremlin pode se sentir justificado em usar armas nucleares estratégicas, o que pode causar resposta similar da Otan e assim por diante, em uma dança macabra de retaliações que tem seu gran finale em uma "destruição mútua assegurada".

Míssil em frente à prédio público em Kharkiv, na Ucrânia - Alkis Konstantinidis - 11.ab./22

Mas e aí? O que de fato aconteceria ao redor do mundo se esse cenário viesse a se apresentar?

Até hoje, só duas ogivas foram detonadas em centros populacionais, em Hiroshima e em Nagasaki em 1945. Os resultados foram estarrecedores. Cerca de 140 mil pessoas em Hiroshima e 73 mil em Nagasaki morreram instantaneamente ou em cinco meses devido à explosão nuclear, ao calor da bola de fogo resultante e à radiação ionizante.

Dentro de 1 km do marco zero, as pessoas foram carbonizadas pelo calor, e aquelas a até 1,5 km de distância sofreram queimaduras com grandes áreas de pele descascando posteriormente. Alguns, especialmente aqueles dentro de edifícios, foram reduzidos a ossos, tendo toda sua carne vaporizada pelo calor intenso.

(Além disso, houve aqueles que escaparam da bola de fogo inicial, mas sofreram efeitos da contaminação radioativa, mas o índice de fatalidade dessa síndrome radioativa aguda foi insignificante em comparação ao efeito do impacto).

Contudo, os ataques ficaram longe de extinguir a população de Hiroshima: cerca de 40% da população sobreviveu. Isso só leva em conta a população de uma cidade que foi alvo direto. Apesar de as armas nucleares modernas serem mais avançadas que as de então, a grande maioria das cidades ao redor do mundo hoje seria poupada de um ataque direto.

As últimas estimativas apontam que a Rússia e os Estados Unidos ambos possuem cerca de 5.000 ogivas nucleares, com o resto do mundo contribuindo com, no máximo, mais mil ogivas (isso leva em conta as armas de China, Índia, Paquistão, França, Reino Unido etc.) –um número insuficiente para cobrir a maior parte dos centros populacionais.

Uma estimativa bem alta do poder de destruição médio dessas bombas é de 1 megaton (cerca de 60 vezes mais potente que a bomba de Hiroshima). Contas de guardanapo mostram que a grande maioria da população mundial sobreviveria ao impacto inicial: uma ogiva de 1 megaton cria uma bola de fogo cobrindo aproximadamente 3 km² e uma onda de pressão que derruba a maioria das residências em uma área de 155 km².

Mesmo uma estimativa extremamente "conservadora", pressupondo que a onda de pressão seria tão mortífera quanto a bola de fogo, aponta que todas as armas nucleares do mundo "só" conseguiriam destruir o equivalente a 250 áreas metropolitanas de Nova York. Isso é muito! Porém, não o suficiente: fazendo outra estimativa conservadora (de que 2% da área terrestre é urbana), no mínimo 80% da população mundial sobreviveria ao impacto inicial.

O efeito imediatamente seguinte, da radiação ambiental, é difícil de estimar, devido a fatores meteorológicos: depende de para onde o vento aponta. Mesmo assim, os efeitos são menos mortíferos que somos levados a crer, e os níveis preocupantes de radiação desapareceriam dentro de cerca de duas semanas. Pressupondo que parte significativa dos sobreviventes ficaria em abrigos durante esse período, a porcentagem de mortos por radiação não seria grande.

O pior, no entanto, ainda estaria por vir.

Tempestades de fogo em florestas, áreas urbanas, complexos militares e industriais liberariam centenas de milhões de toneladas de fuligem e fumaça de carbono negro, que subiriam rapidamente acima do nível das nuvens e para a estratosfera. Essa fumaça reduziria drasticamente a radiação solar na superfície da Terra.

Um estudo climático recente sobre os efeitos de uma guerra nuclear, restrita aos EUA e à Rússia, prevê uma redução de 60 a 70% da luz solar que atinge a superfície da Terra nos seis meses seguintes à guerra. Uma queda maciça na temperatura viria a seguir, com a temperatura permanecendo abaixo de zero durante o verão subsequente do hemisfério Norte.

Esse cenário continuaria assim por no mínimo dois anos, mas o clima não voltaria ao normal por um grande período: mesmo no verão, as temperaturas ainda cairiam abaixo de zero por vários anos no hemisfério Norte, e, até o terceiro e quarto anos, a precipitação global já teria caído pela metade. Mesmo no hemisfério Sul, as temperaturas cairiam entre 10 °C e 3 °C. Isso é o inverno nuclear.

Mais de 90% da produção mundial de alimentos desapareceria, a pesca seria dizimada e a camada de ozônio entraria em colapso. A fome global resultante mataria bilhões de pessoas. Na maioria dos países, menos de um quarto da população sobreviveria por dois anos neste cenário.

A situação seria especialmente drástica no hemisfério Norte: os modelos apontam (em um cenário modesto de guerra nuclear de 4.400 ogivas e 150 tg de fuligem lançada à atmosfera) uma redução média de calorias alimentícias nos cinco anos subsequentes de 97,2% na China, 97,5% na França, 99,7% na Rússia, 99,5% no Reino Unido e 98,9% nos EUA. Em todos esses países, praticamente todos os que sobrevivessem às explosões iniciais morreriam de fome.

Mas, para colocar em perspectiva, o asteroide que matou os dinossauros foi ordens de magnitude mais poderoso do que seria essa hecatombe nuclear e causou uma disfunção muito maior no ambiente. Mesmo assim, um terço das espécies vivas na época sobreviveu.

Então, mesmo depois de um inverno nuclear, é bem provável que uma pequena parcela da população mundial consiga sobreviver em um mundo devastado e estéril, com muita dificuldade e sofrimento, para um dia tentar repovoar o planeta.

Quando o mundo ocidental testemunha os horríveis ataques a civis e o bombardeio de hospitais e maternidades, nosso instinto é exigir maior envolvimento e retaliação de nossos governos.

Temos, no entanto, que manter a cabeça fria e coletivamente recuar da beira do confronto entre a Otan e a Rússia antes que seja tarde demais. Uma escalada nuclear só mataria mais ucranianos, bem como outros bilhões ao redor do mundo. Um suicídio planetário não tem vencedores.

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