Henrique Gomes

Físico, é doutor em gravidade quântica e doutorando em filosofia na Universidade Cambridge.

Salvar artigos

Recurso exclusivo para assinantes

assine ou faça login

Henrique Gomes

Anomalia em experimento dificilmente vai revolucionar a física

Nova medição da massa do bóson W, que desafia modelo padrão, deve ser vista com ceticismo

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Você deve ter visto as manchetes: "Uma nova partícula pode quebrar a física", escreveu a revista especializada em tecnologia Wired; "Resultado chocante em experimento de partículas pode desencadear revolução da física" foi como a BBC saiu com a notícia.

As revistas especializadas em ciência não foram menos hiperbólicas: "Medição chocante do bóson W pode revolucionar a física de partículas", escreveu a Nature.

O acelerador de partículas Tevatron, em Batavia, Illinois, onde foi realizado o experimento que deu origem ao novo trabalho sobre a massa do bóson W - APF/Fermilab

O bóson W é uma das partículas previstas pelo modelo padrão de física de partículas. Apesar de ter sido desenvolvido nos anos 1960 e 1970, o modelo padrão é até hoje nossa mais completa e experimentalmente bem-sucedida teoria de partículas fundamentais.

É a teoria usada para descrever a maior parte das interações da natureza: acreditamos que suas leis regem as forças eletromagnéticas e nucleares (a força restante, a gravitacional, é mais bem explicada hoje pela teoria da relatividade geral, que não é abrangida pelo modelo padrão). Assim como o modelo padrão diz que o fóton intermedeia as forças eletromagnéticas, o bóson W é um dos mediadores das forças nucleares (a força nuclear fraca).

O modelo padrão em si é um quebra-cabeça altamente interligado: cada peça se encaixa só se outras ao redor também se encaixarem. A própria massa do bóson W, que já foi medida em diversos experimentos, pode ser prevista a partir da medição de massas de outras partículas. O "resultado chocante" em questão não é bem um novo resultado, mas uma reanálise mais completa de dados obtidos entre 2002 e 2011 por uma colaboração de cientistas chamada de CDF, que foi publicada em abril.

Os cientistas da colaboração CDF, como bons CDFs, levaram em conta muitas possíveis fontes de erro e calibraram seus resultados com maior rigor, chegando a uma medida da massa do bóson W que não está mais de acordo com a previsão teórica do modelo padrão. Daí as manchetes.

Eu acho que o modelo padrão está à beira de uma revolução? Assim como grande parte dos físicos teóricos, não.

O leitor mais informado sobre notícias de física se lembrará de anúncios similarmente bombásticos do experimento Opera (que anunciou que neutrinos viajando mais rápidos que a velocidade da luz tinham sido detectados). Houve outras notícias similares, sobre anomalias experimentais (experimentos que não condizem com a teoria vigente) que só serão familiares aos realmente aficionados.

Todos esses experimentos são mais rigorosos do que podemos imaginar e levam em conta uma quantidade de dados que está além de qualquer analogia a meu dispor. Ainda assim, grande parte da comunidade sempre acredita que o mais provável é que seus resultados anômalos não precedam revoluções teóricas. Por quê?

O grande filósofo americano Willard Quine tinha uma resposta. Quando fazemos um experimento, normalmente queremos testar só um pequeno componente de todos os mecanismos envolvidos.

Por exemplo, no caso do experimento Opera, o culpado pela anomalia dos neutrinos era extremamente mundano: um cabo malconectado. Claro que a intenção dos experimentalistas não era testar os cabos, mas as propriedades do neutrino.

A evidência empírica, no entanto, é holística: por mais que tentemos isolar um ou outro componente de um experimento, todos contribuem na produção de dados. Por mais que acreditemos que o comportamento de todos os componentes esteja dentro dos padrões esperados, é sempre possível que algum deles seja anômalo. Por exemplo, uma certa medição astronômica poderia ser devida a lentes sistematicamente distorcidas e não ao movimento dos astros.

Em seus extremos, distorções sistemáticas de nosso equipamento revelariam algo sobre sua natureza que nossa teoria atual não levou em conta. Em outras palavras, é sempre possível que um dos nossos pontos de partida —uma suposição que não questionamos, algo que acreditamos sem nem reconhecer— não seja sempre válido.

Por exemplo, antes de Einstein, nenhuma evidência empírica apontaria para a curvatura do espaço-tempo: mesmo que houvesse efeitos devidos a esta curvatura em nossos experimentos, os atribuiríamos a outras causas ou manteríamos esses efeitos como anomalias inexplicadas.

Isto é, nossa teoria também é holística: dado um experimento surpreendente, há várias modificações teóricas que poderiam tentar acomodar o elemento surpreendente. O experimento não vem com uma placa dizendo qual elemento teórico está sob pressão.

Quine compara nossas teorias com teias de conhecimento, com vários fios interligados. Assim, embora seja possível verificar ou falsificar teorias inteiras, não é possível verificar ou falsificar afirmações individuais, só a teia como um todo. Quase qualquer fato particular pode ser salvo, dadas modificações suficientemente radicais da teoria que o contém.

Em outras palavras, para Quine, o pensamento científico formava uma teia coerente na qual qualquer parte poderia ser alterada à luz da evidência empírica e na qual nenhuma evidência empírica poderia forçar a revisão de uma determinada parte.

Mas isso, claro, não quer dizer que na prática todas as partes são igualmente revisadas frente a uma evidência empírica. Isso porque certas partes desta "teia de crenças" são mais interconectadas que outras.

Por exemplo, a lógica fica bem perto do centro da teia. Por causa disso, as revisões de lógica frente a alguma experiência anômala teriam consequências sistemáticas devastadoras, e isso explica por que relutamos em fazer tais revisões.

Da mesma forma, o modelo padrão de física de partículas fica bem central na nossa teia de crenças. Uma modificação central implicaria uma teia radicalmente diferente, que precisaria reacomodar uma quantidade estupenda de fatos interligados. Porém, como disse Hilary Putnam, outro filósofo americano, seria milagroso que nossa teia atual tenha acomodado tanto estando tão errada.

Por isso, acredito em uma de duas explicações para a anomalia do bóson W: ou mesmo os CDFs da colaboração CDF negligenciaram o comportamento anômalo de algum componente experimental ou a modificação do modelo padrão será mínima —e há alguns candidatos simples que acomodariam os novos resultados.

Só modificaremos o modelo padrão radicalmente se duas condições forem satisfeitas: se houver uma quantidade de evidência inegável, distribuída por vários laboratórios e, se além disso, a única teia alternativa tão apta quanto a atual para explicar não só a massa do bóson W mas todo o resto da realidade ao nosso redor requerer uma modificação central.

Do contrário, nosso ceticismo tem toda a razão de continuar vivo frente a essas anomalias. Afinal de contas, o espírito da teia de crenças de Quine se reflete no mantra do grande Carl Sagan: "Alegações extraordinárias exigem provas extraordinárias".

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.