Copio Manuel Bandeira: “E que coisa há aí melhor do que a amizade, depois da graça de Deus?”. Mesmo durante a pandemia, fiz novas amizades. Relações virtuais, mas intensas.
Foi assim com Thiago Amud e Sylvio Fraga, dois músicos, poetas, observadores atentos das mudanças caóticas de cenas culturais contemporâneas. Aprendi muito com eles. Cheguei a assistir uma aula online de Sylvio Fraga sobre a história da paisagem na pintura ocidental desde o Renascimento. Sempre informações valiosas.
Os dois ficaram escandalizados ao descobrir que eu nunca tinha visto o filme “Touki Bouki - a Viagem da Hiena”, do senegalês Djibril Diop Mambéty. Iniciaram campanha acirrada para que eu providenciasse uma cura para esse meu pecado cinéfilo. Aceitei a ordem. Aqui tento viralizar a campanha.
Quem ainda não viu “Touki Bouki” que faça logo essa bondade para sua educação estética. Ainda bem que o filme tem legião influente de fãs, incluindo Martin Scorsese, que cuidou de sua restauração para o World Film Project. Assim, a imagem da capa de seu DVD, lançado em 2008, foi “sampleada” em clipe de Beyoncé e Jay-Z.
Djibril Diop Mambéty já foi chamado de Godard africano. Talvez “avant la lettre”, com olhar mais novo que o da nouvelle vague. Sua maneira muito pessoal —cubismo que volta para a África— de montar imagens e sons, sem linearidade, anunciam muitas das experiências que as telas só veriam em “Adeus à Linguagem” ou na edição extremamente radical que adolescentes e crianças fazem hoje no TikTok ou no Roblox.
Tudo para contar a história de um casal meio “O Bandido da Luz Vermelha” ou “Meteorango Kid” vagando entre a periferia e o centro de Dacar, aplicando golpes diversos para conseguir dinheiro para emigrar para Paris.
Muitas pessoas da família de Djibril Diop Mambéty construíram suas carreiras artísticas entre o Senegal e a França. Tive o prazer, nos anos 1980, de entrevistar seu irmão Wasis Diop, até hoje um dos responsáveis por inovações no pop africano e sua divulgação global. Gente que antecipa o futuro da cultura planetária.
Lembro agora de “Immigrés”, música linda de Youssou N’Dour, outro grande músico senegalês. E penso nos problemas cada vez mais graves que imigrantes enfrentam em todos os continentes, agora vítimas preferenciais de ataques de militantes de novos populismos e de controles de fronteiras que certamente vão se tornar mais impenetráveis no “novo normal” pós-pandemia.
Tudo isso anuncia período traumático para todos os campos artísticos, que desde sempre se alimentam da circulação de ideias e práticas de todas as procedências. Muito do que acontece hoje de mais importante em literatura, artes plásticas, música, cinema, teatro, dança é produto do trabalho de uma primeira ou segunda geração de imigrantes.
São incontáveis os exemplos. Pense na importância de sobrenomes africanos na listas longas e curtas dos principais prêmios literários internacionais: David Diop, Chimamanda Ngozi Adichie, Nnedi Okorafor.
Ou pense nas grandes estrelas do grime, estilo que deixou a periferia para ocupar o centro da indústria musical do país do Brexit. O nome completo do premiadíssimo Stormzy, principal atração do palco principal da última edição pré-pandemia do Festival Glastonbury, talvez o mais influente do mundo, é Michael Ebenazer Kwadjo Omari Owuo Jr. Skepta se chama Joseph Junior Adenuga. Dizzee Rascal é Dylan Kwabena Mills no passaporte (que usou para vir para o Brasil tocar no Tim Festival). E assim por diante, sem parar.
Resultado: impossível descrever o melhor da nova identidade britânica sem esses nomes de famílias africanas.
Mais: como falar do desenvolvimento da inteligência artificial sem levar em conta a trajetória de Mustafa Suleyman, fundador da DeepMind e filho de imigrante sírio que trabalhou como taxista nas ruas de Londres?
É incrível pensar que esse impacto todo é produzido por minorias. Informação surpreendente das aulas de François Héran, na nova cátedra Migração e Sociedade do Collège de France: só há, oficialmente, 3,4% de imigrantes internacionais no mundo. O número mais comumente apresentado —para dizer que vivemos crise migratória como nunca antes na história da humanidade— é 257,7 milhões de pessoas, muito mais impressionante.
Mas, quando vamos para a porcentagem com relação ao total da população do planeta, mesmo arredondando para 5% (contando provável imigração não declarada), aprendemos que 95% dos humanos vivos nunca migraram para fora de seus países.
Imigrantes: poucas e preciosas pessoas. O Brasil precisa sempre renovar as boas vindas para as populações angolanas, bolivianas, coreanas etc. que aqui chegaram recentemente.
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