Hermano Vianna

Antropólogo, escreve no blog hermanovianna.wordpress.com.

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Hermano Vianna

Todo Carnaval tem seu fim

Vamos demorar muito tempo para nos curar da ausência de alegria explosiva

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Aproveitei este verão de calor insensato —mais de 50ºC de sensação térmica no Rio de Janeiro— para esquentar também as descargas elétricas de meus neurônios com a releitura de "A Origem da Espécie".

Ainda bem que Alberto Mussa não seguiu o conselho de "pessoas próximas", que pediram que não publicasse esse livro, pois "não cabia bem a romancista". Bela rebeldia: com sua publicação ganhamos uma das aventuras mais ousadas do pensamento humano no Brasil. Uma brasa, mora?

homem branco e careca, de óculos, diante de estante de livros
O escritor carioca Alberto Mussa, autor do livro 'A Origem da Espécie' - Paula Johas/Divulgação

Alberto Mussa, com quem —pré-pandemia— eu costumava esbarrar pelas ruas cariocas em seu uniforme bermuda e chinela de dedo (muitas vezes formando dupla intelectual exuberante com Luiz Antonio Simas), não vai concordar com meus elogios. Faz advertências: escreveu sua "obra mais radicalmente pessoal", não um "tratado científico".

Mesmo assim: quem mais no mundo fez análise tão rigorosa de quase todos os mitos ("máximo de conteúdo" com "mínimo de expressão") que a humanidade criou para narrar a descoberta da produção do fogo, acontecimento/processo fundamental —com roubos, dádivas e astúcias— que nos tornou "definitivamente humanos"?

Seria spoiler fazer resumo. Quem narra "A Origem da Espécie" é parente dos "detetives" das obras ficcionais de Mussa: "adivinha o passado", com ferramentas avançadas "da genética, da neurociência, da psicologia evolutiva e da arqueologia", propondo hipótese inovadora para o aparecimento do pensamento simbólico na face da Terra.

Precisamos repensar tudo. O vírus nos desafia: qual a importância do humano para a evolução "natural" do planeta? Ainda bem que os estudos arqueológicos estão em ebulição. Outra obra essencial para conhecer as novidades: "The Dawn of Everything", de David Graeber e David Wengrow. Seu subtítulo, "uma nova história da humanidade", é plenamente justificável.

David Graeber morreu em setembro de 2020. Diagnóstico: pancreatite aguda. Penso que todas as mortes durante a pandemia poderiam ser incluídas nas estatísticas de vítimas da Covid-19. Sobretudo por não terem tido direito a funerais apropriados. Já escrevi por aqui: nem começamos nosso trabalho coletivo de luto, de despedida.

A multidão de pessoas amigas de David Graeber bem que tentou encontrar uma maneira de homenageá-lo. Foi organizado, em dezenas de cidades do mundo todo, um "carnaval memorial intergaláctico", transmitido pela internet.

Gosto de cada palavra do convite: "Nunca houve melhor momento para viver suas ideias do que apenas lembrá-las. Para David, o anarquismo era ‘algo que você faz’ ao invés de uma identidade, e assim, com esse espírito pragmático travesso, decidimos organizar um carnaval memorial para David, um que será sobre o futuro: um misterioso e divertido futuro, um que transborda com solidariedade. Um leitmotiv do carnaval é rir na cara da morte, o que pode ser a coisa mais prática a se fazer em situações horríveis. Como todos sabemos, David gostava de brincar. Na verdade, suas últimas palavras foram uma piada".

Carnaval… No fim de semana que vem teremos, pelo segundo ano seguido, um Carnaval sem Carnaval. Vamos —quem sobreviver— demorar muito tempo para nos curar dos efeitos trágicos da ausência de alegria explosiva/criativa das aglomerações nas ruas. Temos que ser fortes.

Nem acredito que vou repetir algo de minha coluna carnavalesca do ano passado: ainda bem que existe o Baiana System para nos dar força.

Em 2021, foi com o disco "OXEAXEEXU". Agora, mais especificamente nesta segunda-feira (21), a banda lança o filme "Manifestação - Carnaval do Invisível", que torna bem visível uma das imagens mais poderosas da história do audiovisual brasileiro: o cineasta Matheus Rocha sendo levantado na sua cadeira de roda por uma massa de gente bem massa com sua dor balançando o chão da praça (ou, segundo João Cabral, "voragens que se desatam,/ redemoinhos iguais,/ estrelas iguais àquelas/ que o povo na praça faz").

Tradução perfeita, realizada, para a utopia desesperada que venho pregando aqui… Incluindo: todo Carnaval, mesmo sem Carnaval, tem seu fim…

Minha colaboração nesta coluna começou em plena pandemia. Só foi possível por causa do vírus e suas variantes. Muitos projetos foram interrompidos, tive tempo para escrever.

Agora, o mundo parece ter decretado o fim da pandemia. Obviamente não terminou (e, pelo visto, desperdiçaremos a oportunidade para inventar um outro "normal" possível).

Porém, minha resistência já está sendo considerada maluquice. Os projetos voltaram. Tenho que pegar em outros batentes. Foi animador: tentei descobrir, quando tudo é perigo, "aquilo que salva". Até breve. A marcha das utopias continua.

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