Igor Gielow

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

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Protestos em Hong Kong evidenciam o monstruoso paradoxo da China

Visitante se pergunta se pujança e tecnologia podem conviver com pouca liberdade

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O recrudescimento dos protestos contra o governo de Hong Kong, que por dois dias seguidos fechou um dos principais aeroportos do mundo, traduz à perfeição o monstruoso paradoxo representado pela superpotência emergente do século 21, a China.

Turista tenta passar sua mala ao tentar entrar no aeroporto de Hong Kong, bloqueado nesta terça (13)
Turista tenta passar sua mala ao tentar entrar no aeroporto de Hong Kong, bloqueado na terça (13) - Philip Fong - 13.ago.2019/AFP

Estive oito dias no país de Xi Jinping, acompanhando missão comercial do governo paulista em Pequim, Xian e, por mais tempo, Xangai. Antes, estivera por umas duas semanas na capital, desembarcado diretamente de um trem vindo de Moscou em plena semana do 11 de setembro de 2001.

Por mais que esperasse um choque, natural para um gigante que teve crescimento de 372% do PIB desde minha última visita (49% foi a marca brasileira de 2002 a 2019), nada me preparou para o que vi. Há muito do relato feito na Ilustríssima desta semana por Ronaldo Lemos: sinais evidentes de uma busca obsessiva por inovação tecnológica.

Em Pequim, as antes intragáveis ruas lotadas ganharam um silêncio estranho. Limitações à compra de automóveis (quem tem dinheiro espera anos na fila, como os brasileiros faziam para ter uma linha telefônica nos anos 1980) são uma explicação, a substituição de motos e motonetas por versões elétricas, outra. Ambas atendem a uma coisa: reduzir a poluição miserável do ar local.

Mas há também uma ordem antes inaudita, que alguns locais atribuem às campanhas do governo por mais civilidade nas ruas para a Olimpíada de 2008. Em resumo, a cidade está mais organizada e limpa. Pobreza explícita, antes bem visível mesmo em regiões centrais, não vi.

Claro, no campo e em vilarejos é outra coisa, mas não é casual a propaganda chinesa de que os anos da revolução capitalista de Deng Xiaoping de 1978 tiraram 720 milhões de pessoas da pobreza.

“Estamos no ponto crítico para nos tornarmos um país de renda alta, e isso traz desafios econômicos e sociais”, disse numa palestra Zhou Jingtong, economista-sênior do Banco da China. Ele lista a guerra comercial com os EUA e os desafios demográficos do país, “fricções que estão nos desacelerando” —com efeito, em 2019 não houve ainda aumento nas exportações chinesas, diz.

Mas quem anda pelas ruas high-tech de Xangai pensa que esse ponto já passou. Apesar de aqui os bolsões mais simples serem evidentes mesmo na sofisticada área do Bund, a pujança da paisagem e a ostensiva integração dos cidadãos à tecnologia fazem o incauto pensar que o tal socialismo com características chinesas deu certo.

Pois é, não é bem assim, e nem falo das facilidades em fazer crescer um país sem liberdades individuais claras —se o Estado quer desapropriar uma área, ele o faz. Por baixo de todo o verniz urbano e de uma infraestrutura de fazer corar os governos paulistas das últimas décadas, há o fato de que o país é uma ditadura.

As onipresentes maquininhas de reconhecimento facial são o retrato mais perverso disso, alimentando um Leviatã eletrônico com o perfil atualizado dos servos do sistema. É assustador o alcance da coisa.

O eficaz uso do celular para todo tipo de transação vai na mesma linha, que de resto é igual ao que temos no Ocidente e em áreas cinzentas, como a Rússia, de discussão sobre os limites ao indivíduo numa sociedade ultratecnológica. Isso fora a bizantina luta para encontrar vãos no Grande Firewall, a muralha virtual que veta inúmeros serviços ocidentais na internet, a começar pelo prosaico Google.

Panorama do centro de Xangai, cidade que é a capital financeira da China
Panorama do centro de Xangai, cidade que é a capital financeira da China - Johannes Eisele - 13.nov.2018/AFP

Isso dito, na China a coisa é escancarada e o debate é substituído por uma retórica de senso coletivo bastante duvidosa. Como disse de forma bem-humorada um morador de Xian, obviamente todos seguem adorando Mao Tsé-Tung, o pai da nação comunista. É seu rosto, afinal, que orna todas as notas de dinheiro no país.

Há chatices triviais, como não poder atravessar a praça da Paz Celestial por ter um visto de jornalista no passaporte, mas no geral um ocidental pode ignorar sem grandes sofrimentos ideológicos a realidade em favor da absorção de elementos culturais milenares e para poder observar algo único (isso para não falar na maravilhosa e variada cozinha, que nada tem a ver com o que se come por aqui).

É um bom debate, claro, como aborda aqui João Pereira Coutinho. Mas a questão maior é a pergunta elaborada pelos manifestantes de Hong Kong.

Eles não querem maior interferência do Estado chinês nos assuntos da antiga colônia, que vive sob um sistema misto no qual há imprensa livre, eleições locais, Judiciário autônomo. Mas ao fundo a questão é outra, até porque o acerto de “um país, dois sistemas” vale só até 2047: é possível conciliar toda essa prosperidade com falta de liberdade?

Parece impossível, mas isso não significa que eles vencerão a batalha no médio prazo. Ao contrário, sendo Hong Kong o entreposto pelo qual entram até 70% dos investimentos diretos na China e uma frente aberta de batalha entre empresas chinesas e americanas, nada indica que Pequim se dobrará aos gritos das ruas.

Mais que isso. Na TV estatal, os protestos curiosamente não são escondidos. Mas o que é destacado pelos apresentadores são os efeitos nefastos para a economia dos atos, como de resto o fechamento do aeroporto deixa evidente.

Parece haver a preparação de clima para uma intervenção mais brutal, de força, ainda que os observadores com quem conversei não esperem um repeteco do massacre de estudantes de 1989 em Pequim.

Essa dinâmica de tensão, contudo, uma hora há de romper o casco da ditadura. Se ela se tornará a mais eficiente que o mundo já conheceu antes disso, essa é outra história, insondável por ora.

Se haverá uma “splinternet”, se a guerra do 5G nos obrigará a escolher se usaremos iPhones ou Huaweis, isso é só o começo. Hoje, a “realpolitik” dá conta dos miasmas oriundos da área de direitos humanos na China: tudo é negócio, então vamos em frente. Mas talvez o embate fulcral do século 21, entre Washington e Pequim, acabe por cobrar alinhamentos. Aí não vai ser simples.

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