Igor Gielow

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

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China prende propagador de fake news sobre vírus e acende sinal amarelo

Epidemias são pratos cheios para governos ampliarem o controle social sobre cidadãos

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A polícia de Hong Kong prendeu, na tarde da segunda-feira (3), um segurança da região de West Kowloon, na área continental da antiga colônia britânica hoje sob controle chinês. O motivo: ele estava espalhando fake news sobre a epidemia do novo coronavírus.

Duas pedestres com máscaras esperam para atravessar a rua em Hong Kong, região especial chinesa
Pedestres com máscaras esperam para atravessar a rua em Hong Kong, região especial chinesa - Anthony Wallace - 4.fev.2020/AFP

Segundo o relato falso que as autoridades resgataram em seu celular, havia dezenas de infectados no shopping center de luxo em que ele trabalha.

A gracinha levou a um pequeno pânico numa cidade que já vive com os nervos à flor da pele —a doença já está instalada no território, tendo até aqui infectado 18 pessoas e matado 1 delas, e tem todo o epicentro mundial da doença às suas costas.

A polícia sacou uma lei de 1935 para justificar a prisão, que pode durar dois meses e gerar uma multa de R$ 500. É preciso ser duro com quem explora o medo numa hora dessas, e a ação assim merece aplauso.

Mas o precedente levanta as orelhas da oposição ao governo da região, que vive uma convulsão política furiosa desde junho do ano passado e onde a reação titubeante das autoridades à crise já colocou o coronavírus no cardápio das insatisfações.

Até há pouco o uso de máscaras era proibido na cidade, sob pena de você ser preso durante manifestações. Para os ativistas, o motivo do uso do apetrecho era bom: o sistema de identificação facial chinês é um Leviatã dos mais eficazes do mercado.

O caso leva a um questionamento óbvio por lá: e se o governo amplificar o expediente e usar o genuíno medo da epidemia para justificar detenções seletivas de adversários do regime comunista de Pequim?

Epidemias e desgraças em larga escala, quando não incapacitam de vez sistemas políticos podres, oferecem oportunidades únicas para governos autoritários afiarem seus instrumentos de controle.

Há exemplos mais virtuosos, claro, como o legado do futuro Marquês do Pombal ao redesenhar a Lisboa após o terremoto de 1755. Mas o mundo distópico, à la “Black Mirror”, em que vivemos, esse sugere o pior, não o melhor dos governantes.

Aliás, para ficar no registro pop, a crise levou ao aumento da procura em plataformas de streaming pelo filme “Contágio” (Steven Soderbergh, 2011). Boa pedida: é um thriller de epidemia assustadoramente real —vírus com efeitos semelhantes ao do surto atual, reações desconcertadas de governos, a corrida pela cura e até um propagador de fake news na internet que se dá mal.

O embate acerca de interesses individuais e coletivos está também no cerne da discussão sobre as quarentenas envolvendo o vírus de Wuhan, não só na China, mas em vários países ocidentais. É fácil condenar tanto o atraso dos chineses em tomar medidas quanto a suposta ineficácia em confinar dezenas de milhões sem saber o tempo exato de incubação da doença.

Aqui no Brasil, tudo indica que os preparativos estão corretos, dentro do possível. Países com maior intercâmbio com a China, como EUA e Alemanha, radicalizaram bem mais. Pode dar certo, pode não dar, mas ninguém quer ser acusado de importar um caso da doença ou de facilitar sua propagação.

Mas tudo segue um roteiro macabramente saboroso de escalada neurótica, e quando o dono de restaurante do bairro paulistano da Liberdade começa a reclamar de preconceitos por parte de clientes, vemos que a globalização da ignorância é implacável.

Ao menos ainda não temos de nos preocupar em ser identificados pelo governo —até porque se uma lei radical para prender quem espalha fake news existisse aqui e fosse levada a sério, iam sobrar poucos nele e na oposição. Ia faltar cadeia.

O fato é que o vírus de Wuhan estrela uma epidemia 4.0, na qual os maiores fantasmas dos nossos tempos pontificam, a começar pela estupidez que se espalha na velocidade de um tuíte. Parece pouco provável, mas seria bom se ela acabasse do mesmo jeito, num clique.

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