Igor Gielow

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

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Bolsonaro e Trump têm seus destinos entrelaçados ao coronavírus

Cálculo político, negação e briga com governadores e autoridades de saúde unem presidentes

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As ilhas Pitcairn são um ponto perdido no Pacífico Sul. Tão isoladas que o novo coronavírus não pegou nenhum barco para lá ainda. Quatro formações compõem o arquipélago, e apenas uma, uma rocha vulcânica de meros 4,6 km², é habitada por parcas 54 pessoas.

Elas descendem de nove amotinados do HMS Bounty, um navio britânico cujo capitão, William Bligh, não era exatamente flor que se cheirasse. Três versões hollywoodianas para a história glorificaram Fletcher Christian, o líder do motim, que igualmente não era movido pelos mais nobres sentimentos.

Trump e Bolsonaro no famoso jantar na Flórida em que parte dos convidados pegou o coronavírus
Trump e Bolsonaro no famoso jantar na Flórida em que parte dos convidados pegou o coronavírus - Alan Santos - 12.mar.2020/Presidência da República/via Reuters

A começar pelo tratamento dispensado à companhia que trouxeram à ilha, 11 mulheres, 6 homens e uma bebê do Taiti. Práticas arraigadas dos homens que desembarcaram em 1790 tornaram-se um escândalo e caso de estudo antropológico em 2004, quando seis descendentes foram condenados por abuso sexual de menores.

Nesta terça, a crise do coronavírus trouxe o minúsculo território britânico de volta ao noticiário, de uma forma enigmática e inserida em uma turbulência política envolvendo um presidente que quer reabrir a economia de seu país a fórceps e governadores de estado que resistem a movimentos descontrolados.

Poderia ser o Brasil de Jair Bolsonaro, mas é a matriz, os EUA de Donald Trump. Na noite de segunda, o presidente americano reagiu a um movimento coordenado de governadores para escalonar de forma embasada em dados científicos o levantamento de restrições nas costas leste e oeste do país.

"Quando alguém é o presidente dos EUA, a autoridade é total", disse um colérico Trump. Qualquer semelhança com Bolsonaro e sua promessa de decreto para abrir o comércio nos estados não é mera coincidência.

O líder informal dos chefes estaduais, talvez o rosto mais conhecido da crise nos EUA, reagiu nesta terça. Governador de Nova York, estado com a maioria dos mais de 26 mil mortos pela Covid-19 até aqui, Andrew Cuomo foi taxativo: "Nós não temos um rei".

A tréplica trumpista veio na forma de uma postagem cifrada no Twitter, daquelas de fazer Carlos Bolsonaro se orgulhar.

Cuomo é do Partido Democrata, que terá Joe Biden a enfrentar o republicano Trump na eleição de novembro. Nesse jogo de espelhos com a realidade aqui na sucursal do trumpismo, ele cumpre o papel do paulista João Doria sem a pretensão presidencial imediata do tucano.

"Diga aos governadores democratas que 'Motim no Bounty' era um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Um bom e velho motim de vez em quando é uma coisa excitante e revigorante de ver, especialmente quando os amotinados precisam tanto de seu capitão. Tão fácil!".

Cinéfilos ficaram confusos: de qual versão hollywoodiana o presidente estaria falando, a de 1935 com Clark Gable, a de 1962 com Marlon Brando ou a de 1984, com Mel Gibson, todos no papel sanitizado do líder do motim?

Pior: o que Trump quis dizer? Em nenhuma das versões os amotinados precisam do capitão: ao contrário, eles o jogam num bote, fogem com o navio e depois o afundam quando chegam a Pitcairn.

Se Trump quis fazer uma defesa tardia de Bligh, a coisa fica ainda mais sentido, dado que ele é pintado como um monstro no cinema —a historiografia tem mais nuances, como o livro de Caroline Alexander sobre o tema prova.

(Em favor do velho capitão, sua história real não acabou ali. Ele foi jogado ao mar num bote com 18 apoiadores, conseguiu chegar em 47 dias a Timor, 6.700 km distante, e em 1806 virou governador de um território na Austrália. Foi derrubado numa revolta, mas absolvido depois, morrendo em 1817 em Londres).

Provavelmente Trump apenas falou bobagem enquanto troca farpas com governadores e também com Anthony Fauci, o czar do combate à Covid-19 nos EUA. Assim como Bolsonaro com Mandetta.

Sofisticação intelectual e clareza de expressão são atributos que faltam tanto a Trump quanto a Bolsonaro, que em agosto de 2019 chamou o colega de "meu ídolo", além de ter embarcado numa política de alinhamento a Washington inconsequente e com pouco retorno até aqui.

Nessa crise do coronavírus, Trump voltou atrás mais rapidamente do negacionismo da gravidade da crise do que Bolsonaro. As pilhas de caixões em vala comum em Nova York não lhe deram muita alternativa, mas ele segue insistindo em enxugar o gelo da recessão à frente de olho em sua própria disputa eleitoral.

O brasileiro, por aqui, também deu uma recuada de mentirinha no discurso da "gripezinha", mas parece convicto de que não terá de assumir a fatura dos mortos que se acumulam enquanto seus acólitos dizem que o pior já passou ou que a hidroxicloroquina tudo irá resolver.

Como Trump disse na tarde de terça que "salvou milhares de vidas" proibindo viagens à China, enquanto anunciava o corte de verbas americanas para a Organização Mundial da Saúde, por aqui temos os filhos presidenciais postando resumos de ações do governo como se o pai não tivesse ignorado a Covid-19.

O cálculo todo é uma versão tropical do cinismo trumpista: ter algo parecido com uma economia funcional em 2022 e dizer que os problemas não são dele.

Bolsonaro mantém sua aposta firme apenas na turma que vai para a rua atrapalhar ambulância porque crê que, lá na frente, só haverá ele e o PT novamente para a disputa. Segundo essa visão, aqueles horrorizados com sua displicência com o vírus terão mais medo do petismo e voltarão a apoiá-lo.

Se a ascensão de Bolsonaro pode ser inserida no contexto da chegada de Trump ao poder, respeitadas as particularidades de ambos os casos e as enormes diferenças de poder de fogo para agir agora, não deixa de ser coerente que o destino de ambos esteja cada vez mais entrelaçado com as espículas do Sars-CoV-2.

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