Igor Gielow

Repórter especial, foi diretor da Sucursal de Brasília da Folha. É autor de “Ariana”.

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Cemitérios preparam fatura que será colocada na mesa de Bolsonaro

Lá na frente, o Grande Centrão poderá mirar o presidente e dizer: "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?"

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Nos 1.929 dias que durou o principal confronto militar em que o Brasil já se envolveu, a Guerra do Paraguai, morreram em média pouco mais de 25 pessoas por jornada, segundo as estatísticas capengas disponíveis do século 19.

Nos 42 dias que se passaram desde que a Ceifadora passou a colher com a Covid-19 por aqui, faleceram em média 119,4 pessoas, dizem números só um pouco mais confiáveis, apesar de 150 anos separarem o fim da guerra do nosso tecnológico século 21.

Funcionários levam caixões para valas no cemitério Parque de Manaus, na capital do AM
Funcionários levam caixões para valas no cemitério Parque de Manaus, na capital do AM - Sandro Pereira - 28.abr.2020/Fotoarena/Folhapress
Comparar mortes violentas por desígnios políticos às fatalidades decorrentes da natureza fria e isonômica de um vírus é, para todos os efeitos, um exercício fútil.

Mas serve como um alerta para um país dado a normalizar suas estatísticas macabras, vide os mais de 50 mil assassinados em 2019 —que dão, aliás, uma média diária inferior à do novo coronavírus até aqui, para quem gosta de dizer que é mais fácil morrer num assalto do que do vírus.

A extensão da tragédia sobre a psiquê nacional ainda não se desvelou, até porque há desníveis regionais e socioeconômicos inerentes às características brasileiras que determinam seu grau de impacto. Além do óbvio: sabemos pouco, do ponto de vista epidemiológico, por falta de dados.

Isso dito, a conta perceptível começa se avolumar em todos os cantos. Há a dança macabra de corpos sem caixões na desassistida e "ribeirinha" Manaus e, agora, o preço da leniência na rica e "europeia" Blumenau, com o dobro de casos registrados após o comércio promover uma farra na sua reabertura.

Chamado à resposabilidade de comentar a matança em curso em seu país, Jair Bolsonaro conseguiu produzir mais um monumento à insensibilidade, que se soma à sua flagrante irresponsabilidade sanitária. "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?", perguntou a repórteres que o inquiriam sobre o recorde de mortos do dia.

O presidente Bolsonaro mostra alvo atingido por ele em clube de tiro em Brasília
O presidente Bolsonaro mostra alvo atingido por ele em clube de tiro em Brasília - Jair Bolsonaro no Facebook - 28.abr.2020

Há muito a sugerir ao mandatário máximo, que passara a manhã praticando tiro, esse esporte associado à vida e à saúde, mas seria inútil. A obtusidade de Bolsonaro na gestão da crise, de resto crescentemente desaprovada pela população segundo o Datafolha, torna conselhos inúteis.

Mas talvez o presidente saiba que não adianta culpar governadores pela crise econômica que, aliás, ainda nem chegou com toda sua fúria.

"Ah, mas eu tenho meu apoio em um terço da população estabilizado, segundo esse Datafolha, talkey? Nem o Moro me derrubou", diria um imaginário presidente. Verdade relativa, mas a fotografia mostra mudanças sutis na composição da argamassa que sustenta o muro de arrimo bolsonarista.

De dezembro para cá, saíram mais ricos e escolarizados e entraram mais pobres e com pouca instrução no polo pró-Bolsonaro. Justamente aqueles que estão se amontoando em filas da Caixa atrás de auxílio emergencial e que, ato contínuo, poderão estar se amontoando em emergências e UTIs.

Isso para não falar sobre a debacle na economia que, quando sobrevier, colherá primeiro justamente os mais necessitados. Como sempre foi. Ainda não é possível aferir precisamente também o efeito da autofágica luta dentro do bolsonarismo disparada por Sergio Moro e seu WhatsApp-bomba, que ainda terá vastas emoções na corte suprema.

Pelos lances iniciais, a baixaria está só começando, com os suspeitos usuais à frente. Espera-se ao menos que o espírito de corpo da Polícia Federal impeça que o doutor Ramagem cumpra os desígnios de seu chefe.

Isso se ele conseguir assumir o cargo, algo imprevisível dada a rápida ação do Supremo, que tanto lembra o impedimento de Lula de virar "premiê" de Dilma Rousseff nos estertores do governo da petista, em 2016.

Que evite, assim, a transformação do órgão numa versão tapuia da Stasi alemã-oriental, em nome da revolução antiglobalista ou qualquer mentira para disfarçar a proteção tribal ao clã presidencial.

Mas antes, a verdadeira fatura, aquela mensurável em histórias de vidas destroçadas que frequentam o cotidiano, nos caixões e na falta deles, será depositada na mesma caixa de correio frequentada por todas as outras em tempos de crise: a do Palácio do Planalto.

É o preço do presidencialismo brasileiro, a despeito do empoderamento de gestores estaduais e municipais na crise, pela Justiça, dada a inépcia federal. Além disso, Bolsonaro age deliberadamente contra medidas que buscam mitigar a infecção, enquanto em sua maioria governadores e prefeitos vão no sentido contrário.

Fernando Collor e Dilma tiveram todos problemas e remendos semelhantes, ainda que com gradações diferentes, aos que se apresentam para Bolsonaro. Mas nenhum teve de lidar com uma tragédia humana dessa magnitude.

Pode dar tudo certo para o presidente, ao fim. A curva de infecção do Sars-CoV-2 pode decair, a apuração no Supremo não dar em nada, a imolação de Paulo Guedes no altar da crise pode ficar para outro dia, e os militares dirão que foi tudo obra deles. Talvez até dê para destratar os aliados instantâneos de agora no Congresso.

Mas o espectro que vem se materializando nesse futuro incerto é outro: um Grande Centrão, olhar vítreo diante de um Bolsonaro encurralado, dizendo: "E daí? Lamento, quer que eu faça o quê?".

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