Ilona Szabó de Carvalho

Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

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Ilona Szabó de Carvalho

Números não choram

Dois lançamentos recentes nos mandam mensagens centrais da periferia

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Dois princípios importantes são levados em conta por quem se propõe produzir impactos reais na área de políticas públicas. Em primeiro lugar, basear estratégias em evidências científicas aumenta as chances de que elas produzam impactos positivos.

Em segundo, números não choram, e, portanto, é preciso, além de analisar dados, escutar as pessoas —em especial, as que têm maiores dificuldades para acessar direitos básicos em nosso país.

Dois lançamentos ocorridos nas últimas semanas me lembraram disso. No início de outubro foi divulgado o Censo Populacional Maré, extenso relatório produzido por estudiosos que são também moradores do território da zona norte do Rio, onde residem cerca de 140 mil pessoas.

O documento mostra dados sobre perfil étnico-racial, maternidade e paternidade, educação, questões ambientais. Já na semana passada, o rapper Emicida, nascido na zona norte de São Paulo, apresentou o álbum “AmarElo”, em que trata de religiosidade, família, saúde mental.

O rapper Emicida em sua produtora, Laboratório Fantasma, em São Paulo
O rapper Emicida em sua produtora, Laboratório Fantasma, em São Paulo - 25.out.2019 - Karime Xavier/Folhapress

Com linguagens distintas, ambos exploram as complexidades que caracterizam territórios e populações vulneráveis em nosso país. Entre elas, estão os desafios relacionados ao acesso a políticas públicas, mas também as potencialidades de espaços e grupos periféricos.

Se, a essa altura, alguém está se perguntando o que isso tem a ver com segurança pública, a resposta é: tudo. A violência é resultado de uma combinação de fatores de risco, incluindo desigualdade e pouca mobilidade social, baixo acesso a emprego e educação de qualidade, urbanização acelerada e desordenada, e a condução equivocada da políticas de drogas que reforça a economia do crime, a espiral de mortes violentas e corrompe o Estado de Direito.

O Censo, uma iniciativa da Redes da Maré em parceria com o Observatório de Favelas, mostra que o analfabetismo de pessoas maiores de 15 anos é o dobro dentro da Maré (6%) em comparação com a média observada na cidade do Rio de Janeiro pelo IBGE em 2010, de 2,8%.

O relatório lembra que, em 2016, escolas locais ficaram fechadas por 25 dias em 2016, e, em 2017, por 35 dias, devido a confrontos entre traficantes e desses com a polícia. Indica ainda que um em cada três jovens entre 20 e 24 anos já é responsável ou compartilha a responsabilidade pelo próprio domicílio.

“Essa informação demonstra que os jovens de favelas também assumem papéis econômicos e sociais em seus lares, inclusive, como chefes de família, se contrapondo aos estigmas que, de forma reducionista, são dirigidos a esse segmento”, afirma o texto. A publicação enfatiza a importância da produção de conhecimento como ferramenta de mobilização organizada de moradores para reivindicar direitos a autoridades.

Os dados, como afirmo no início, não são a única ferramenta para gerar mudanças. Em entrevista recente, Emicida avalia que “A música é capaz de transformar os lugares por onde ela passa”. A letra de “AmarElo”, canção que dá nome ao seu álbum, afirma “Tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí”, numa provável referência à letalidade violenta que atinge sobremaneira jovens de periferia. Adicionalmente, a música traz mensagens encorajadoras sobre enxugar lágrimas e ir atrás do próprio diploma.

Dados e versos carregam uma mensagem central. Conteúdos produzidos por quem vive a realidade local servem de orientação valiosa para governantes e para a sociedade civil sobre em que e como investir recursos que tenham resultados concretos. Ou, como resume de maneira assertiva, o rapper: “Permita que eu fale, não as minhas cicatrizes/ Elas são coadjuvantes, não, melhor, figurantes/ Que nem devia tá aqui”.

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