Ilona Szabó de Carvalho

Presidente do Instituto Igarapé, membro do Conselho de Alto Nível sobre Multilateralismo Eficaz, do Secretário-Geral. da ONU, e mestre em estudos internacionais pela Universidade de Uppsala (Suécia)

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Ilona Szabó de Carvalho

No conflito entre ciência e governo, quem perde é o futuro

Muitas vezes, o negacionismo científico não é só ignorância, mas uma arma do autoritarismo

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Esta coluna é parte da campanha #ciêncianaseleições, que celebra o Mês da Ciência. Agradecemos aos colunistas que cederam seus espaços para refletir sobre o papel da ciência na reconstrução do Brasil. Quem escreve é o físico e professor de sociologia da ciência Yurij Castelfranchi.

Em plena Segunda Guerra Mundial, o sociólogo Robert Merton já alertava que, apesar da "fé da cultura ocidental na importância da produção e difusão do conhecimento", havia um ataque à ciência e "o contágio do anti-intelectualismo" ameaçava tornar-se uma epidemia.

As catástrofes que acontecem quando a política resolve ignorar a evidência são tragicômicas. Na década de 1920, cientistas alemães financiados por um milionário davam início a uma guerra a favor da "ciência ariana" e contra o "materialismo", insidioso veneno do comunismo e do pensamento judaico, ambos representados pela Teoria da Relatividade de Einstein. Führers desta guerra eram dois físicos vencedores do Nobel, Philipp Lenard e Johannes Stark, que se dedicaram a destruir a "ciência judia", dogmática e cerebral (com isso, eles queriam dizer que não conseguiam entender a matemática das teorias modernas).

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Projeção de frase de incentivo à ciência e pela vacina em Brasília - Hannah Zuquim - 21.jan.21/divulgação

Nos mesmos anos os soviéticos também caíam no golpe da anticiência. O agrônomo Trofim Lysenko sustentava que era possível treinar plantas para resistir ao frio e as descendentes herdariam o treinamento. O problema era que a genética já havia refutado o lamarckismo (a teoria de hereditariedade de características adquiridas durante a vida). Lysenko, porém, não acreditava em genes: era "pseudociência burguesa". Apesar do próprio Stalin achar absurda a ideia de ciência burguesa, Lysenko se tornou o herói que ia resolver a crise alimentar soviética.

Nazistas e soviéticos tinham um jeito prático de resolver as controvérsias científicas, o mesmo adotado por governos autoritários nas democracias ocidentais: negar as evidências e ameaçar os cientistas. Os nazistas proibiram o ensino de teorias "judias" ou "comunistas". Os soviéticos decretaram que quem discordasse do Lysenko era um sabotador. Resultado: milhares de cientistas alemães e soviéticos exilados, presos, mortos.

A Alemanha boicotou seus próprios misseis V1 e V2, pois Hitler, mito "enviado por Deus", acreditava em teorias da conspiração e não em mísseis. (Hoje, a moda entre mitos enviados por Deus é acreditar em teorias da conspiração e não em vacinas.) Os stalinistas mataram biólogos, negaram a genética e, bônus, aproveitaram para censurar neurologia, biologia celular e outras disciplinas "burguesas", como a sociologia, a linguística comparada, a física relativística.

Moral da história: muitas vezes, o negacionismo científico não é só ignorância, mas uma arma do autoritarismo. Não se espalha apenas por irracionalidade, mas pelo cinismo de políticos e milionários, ou pelo oportunismo de cientistas. Dizia Merton que, para a ciência funcionar, o método não é suficiente. Os cientistas perseguem valores específicos – como ceticismo, universalismo, acesso aberto —que podem entrar em conflito com normas sociais ou interesses, inclusive nas democracias.

A ciência pode existir sem a democracia, mas sofre. Pode existir numa democracia que controla ou privatiza o conhecimento, mas também sofre. Contudo, oitenta anos depois, sabemos que, quando Estado e ciência entram em conflito, quem mais perde é o povo. Um governo que nega a ciência desiste de tomar decisões eficazes, dinamita seu futuro, sua sustentação e sua capacidade de reagir às emergências.

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